sábado, janeiro 31, 2004

O sorriso de Mona Lisa




Ao sair do cinema, as imagens das filhas da elite americana que estudavam em Wellesley, e o ambiente conservador mostrado em "O sorriso de Mona Lisa" me fizeram transitar da aristocrática Boston para uma pequenina cidade de Goiás, onde passei a adolescência.

A estória da professora de artes vivida por Júlia Roberts, que teve diversos namorados e ainda não era casada, teria cores e intensidade bem diferentes para os costumes severos das famílias de todas as classes sociais que viviam no interior do Brasíl.

Distantes dos ecos do livro O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, em pequenas cidades perdidas no meio do Brasil, homens e mulheres construiam o país que herdamos baseado em regras rígidas e fortes punições.

Uma das regras vigentes, e que desde pequena aprendi, era que existiam três tipos de mulheres: as moças de família, as moças levianas e as prostitutas, sendo muito fácil "descer a ladeira" dessa classificação, e impossível subi-la.

As moças de família eram criadas para se casarem, para serem boas esposas, mães e donas de casa. Dedicadas e discretas, respeitavam os pais, e não se deixavam levar por intimidades com os rapazes.

Já as moças levianas não chegavam a ser prostitutas, mas nenhum rapaz em sã consciência aceitaria como esposa uma moça leviana, ou na versão popular, uma "biscate".

Em geral essas pobres moças haviam sido seduzidas e perdido a virgindade, e sobrava para elas ser amante de homens casados, ou casos temporários de algum rapaz solteiro. Perdida a beleza só restava á elas se tornarem prostitutas.

Esse era o terror de todas nós, adolescentes de então, que móravamos a milhares de kilômetros de distancia dos grandes centros. Ricas, remediadas ou pobres, todas morriam de medo de "perder a honra".

Enquanto escrevo penso em como essas frases soam de modo estranho e inadmissível até para mim mesma. Imagino que para as meninas de hoje deva parecer ficção pura.

Mas era assim.

A mãe se encarregava desde cedo a ensinar à menina o trabalho de esposa: cozinhar, costurar, limpar, cuidar de crianças, odedecer e cumprir seus "deveres conjugais". Essa enigmática expressão, sempre pronunciada em tom mais cerimonioso, jamais merecia grande explicação e soava mais como um sacrifício desconhecido mas imprescindivel para quem queria se realizar na vida, tendo casa e filhos.

Do rapaz, o pai se encarregava: "Meu filho, temos que ter uma conversa de homem para homem. Você já está na idade de...’

Os costumes se preservavam pela repetição do modelo, de pai para filho e de mãe para filha, sem nenhuma informação ou influência nova que pudesse atravessar as estradas poeirentas e esburacadas que separavam a pequena cidade de Itapuranga do mundo civilizado.

A não ser os livros. Raros, proibidos, vistos como agentes de subversão.

Em 66, apenas dois anos antes do festival de Woodstock, o interior do Brasil se regulava por costumes do século passado.

Exatamente nessa época comecei a ler os dezoito volumes da Comédia Humana, e a sonhar com a vida parisiense e os personagens de Balzac. Também nessa época o mundo começou a ter para mim uma dimensão maior que os limites da pequena cidade de uma única praça e igreja.

E enquanto eu fugia do meu cotidiano pela literatura, uma jovem senhora, nossa vizinha e mãe de um colega meu de escola, foi expulsa de casa.

Ela havia se casado aos treze anos com um viúvo de mais de 40, num casamento arranjado pelos pais.

Aos 29 tinha um filho de 14 anos, e um marido grosso, a camisa mal abotoada deixando aparecer a barriga proeminente, dono de um armazém, incapaz de enxergar a carência afetiva da esposa.

As más linguas diziam que ela queria ter mais filhos mas que ele "já não dava mais no couro".

Até que um homem da capital que vendia mercadorias para o armazém descobriu no olhar tristonho e na beleza comum de nossa vizinha um encanto especial.

Bem vestido, educado, viajado e habituado a cultivar romances em sua rota de negócios, foi fácil para ele conquistá-la.

Por algum tempo as coisas correram bem pois o sedutor vinha apenas uma vez por mês para a cidade. Até que aconteceu o pior: ela ficou grávida e em pouco tempo toda a cidade comentava a estória.

Ao marido traído, pelos costumes da época, só restava expulsá-la de casa.

Sem meios para sobreviver, sem chances de ser aceita na casa dos pais que tinham outras moças a casar e não podiam ter a reputação manchada pelo comportamento da irmã, a mãe de meu colega não teve outro recurso que buscar abrigo e sustento na "zona", abreviatura usada na época para designar "zona de meretrício", área demarcada na periferia da cidade, que tinha as casas sinalizadas por luzes vermelhas.

Essas estórias tão corriqueiras na minha adolescência, coloridas com os tons avermelhados da terra batida que pavimentava as ruas da cidade, tem pouco ou nenhum contato com os tons sépia da aristocrática Boston dos anos 50, e a refinada elegância das moças de Wellesley.

Sequer parecem ter ocorrido no século do celular, da proliferação da Internet e da clonagem. Mas ocorreram há pouco mais de 30 anos. E mostram que em uma geração as mudanças nos costumes foram gigantescas, e nós, cada um á sua maneira, construímos um mundo muito diferente para nossas filhas e filhos.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Do tempo

Nessa noite de chuvinha fina e temperatura amena em Goiânia, busco coragem no fundo da alma para renunciar a um cálice de vinho tinto. Tenho um preço a pagar na volta das férias e as calorias estão contadas. E numa noite de chuvinha fina, vinho e aconchego são gêneros de primeira necessidade.

Sempre gostei da chuva em todas as escalas, até mesmo as tempestades com raios e trovões e água torrencial. E há uma beleza selvagem na forma como o céu se carrega em tons ameaçadores, dando uma noção prévia do que virá pela frente. As tempestades sempre me pareceram uma demonstração de força da natureza, uma forma de nos relembrar quem é que manda, no frigir dos ovos.

Essa chuvinha fina me remete mais ao sentido de continuidade, persistência, constância. Quase uma modificação do sentido do tempo que toma uma velocidade diferente, mais lenta.

Olhando por um prisma mais amplo, me dou conta de que cinquenta verões se passaram diante dos meus olhos e com eles vários dias de chuvas finas ou tempestades teatrais. Nem todos fáceis. A maioria valendo cada gota de chuva.

E um novo janeiro inaugura um novo numerador.

"A sensação de tempo, como a da cor, é uma forma de percepção. Assim como não existe cor sem olho que a distinga, também um instante, uma hora ou um dia nada significam sem um evento qualquer que os marque. E assim como o espaço não passa de uma possível ordem de objetos materiais, também o tempo não passa de uma possível ordem de acontecimentos." Albert Einstein, nessa fantástica frase derramou mais conhecimento da alma humana que da física quântica.

Rápidos, nem sempre fáceis, os dias só têm a dimensão da sua real importância depois de vividos. Como os paralelepípedos de Proust, chave para uma viagem:
"... que é uma impressão do passado... e que só podemos conhecer quando preservada, pois no momento em que a vivemos, ela não se apresenta à nossa memória, mas ao centro das sensações que a suprimem".

Dito de maneira menos elaborada, o que vivemos aqui e agora consome atenção demais enquanto estamos vivendo, para que possamos avaliar o seu impacto, e requer tempo - esse enigmático componente - para fazer sentido no novelo de uma vida.

É assim que olho para esse janeiro, tão novo e ao mesmo tempo tão conhecido, emoldurado pelas mesmas janelas, pelas mesmas árvores que plantamos e ao mesmo tempo com tantos sonhos e expectativas dessa nova fase que se inicia.

Os bons verões, como as boas colheitas, são construídos na rotina das horas, na percepção das inúmeras oportunidades das pequenas alegrias.