segunda-feira, março 29, 2004

Inspiração

Muitos amigos encerraram seus blogs. Alguns de forma temporária, outros para valer.

Há dias esse tema tem me instigado. Há dias atrás perguntei a um grande amigo que mantém seu blog como estava sendo a experiência para ele. E a resposta me surpreendeu muito: "Tenho me questionado muito sobre se vale ou não a pena. Às vezes, simplesmente, nada tenho para dizer e no fim fico me cobrando e preocupado com a ausência de posts."

Também comigo é um pouco assim. Fico um tempão com absoluta falta de temas para escrever.

Diferentemente de pessoas altamente inspiradas, e temos várias em nosso meio, sou uma criatura absolutamente comum, e, por isso mesmo, os fados (ou dardos) da inspiração não me frequentam. A bem da verdade, só de vez em quando me aparece uma idéia, mas isso não é constante.

Quando comecei o Sherazade pensei principalmente em compartilhar os longos diálogos silenciosos que mantenho comigo mesma enquanto dirijo, enquanto espero, quando olho para o teto ou para o chão lá em baixo, nas frequentes viagens.

Mas quando vou escrever sempre acho os frutos dessas conjecturas simplórios demais para serem compartilhados.
Raramente, uma idéia me parece digna de ser desenvolvida. E, assim, fico semanas com absoluta falta de um tema que puxe o fio do novelo para um post decente.

Sempre gostei muito de estórias, de ouvi-las e de contá-las.

E o espírito humano criou infinitas formas de contar estórias, chegando hoje a mais recente versão eletrônica: os blogs. Algumas pessoas tem uma ansiedade natural por publicar, com temas interessantes acumulados em filas respeitáveis, aguardando a sua vez de serem desvendados...

Para essas pessoas tudo é tema interessante, e é fácil começar sem medo de se perder no labirinto do seu universo interior, este grande fermentador do impulso por comunicar.

Para essas pessoas as percepcções se organizam e se misturam como correntes de águas multicoloridas, gerando formas e deformando as imagens recem criadas.

Mas ás vezes esse universo interior se recolhe atrás de alguma porta imaginária, da qual não conseguimos a chave.
Falar de que? Porque? A quem interessaria o tema x ou y?

Como o Sherazade se propõe a ser uma atividade prazerosa, também não me cobro muito. Escrever os posts ainda é para mim um reduto de prazer e não pode se tornar obrigação, as quais já tenho em quantidade acima e além do desejável.

Por tudo isso, ainda não me coloquei o dilema que percebo em alguns amigos: manter ou não o blog.
E vou seguindo adiante como uma bloguera bissexta, tendo como leitores somente os amigos, pois este relevam o fato de verem sempre o mesmo post semanas a fio...


domingo, março 14, 2004

Oceano interior

O que pensam essas pessoas enquanto dirigem nesse mar de carros da Avenida Paulista nesse início de manhã cinzenta?

A maior parte dos rostos que vejo mostra expressões compenetradas, dando a impressão de que o sinal fechado é a senha para mergulhar em um mundo complexo e questionador.

No que pensa essa senhora bem penteada, olhando para frente determinada e firme, como se seu carro brilhoso tivesse que arrancar e ganhar a primeira posição do grid de largada? Estaria com pressa de chegar ao trabalho para evitar olhares de censura pelo atraso? Pensaria que tem que aproveitar o horário do almoço para resolver alguns problemas da casa? Ou está se lembrando dos longos silêncios de ontem à noite?

Todos temos nosso oceano interior que aflora em frestas ou nos inunda.

Eu me lembro da música “não, não posso parar, se eu paro eu penso, se eu penso eu choro”, como se fosse possível fugir de si mesmo indefinidamente. Se é possível esquecê-lo por algumas horas, não há como ignorar nosso mundo interior quando olhamos para o teto à noite, ou para um ponto indefinido em qualquer momento do dia.

Ele está sempre lá, influenciando nossas atitudes, refluindo nos momentos de decisão, como um mentor difuso, integrante de nós.

Às vezes transparente e calmo, não raro tumultuado e tempestuoso esse universo habitado por pessoas, imagens e sentimentos também é pleno de lacunas, de silêncios, de palavras não ditas, de indagações "e se?".

Mistura lembranças de cheiros e sabores, a cor da roupa numa data especial, as lágrimas de uma forte decepção, um momento de profunda alegria, várias manhãs de Natal, o medo das contas a vencer, o terror das contas vencidas, o desejo negado, um olhar terno, o sonho adiado.

Às vezes o oceano interior é cheio de sombras, soterrado em mágoas não resolvidas, escurecido pela amargura. Ou se parece mais com áreas abertas e ensolaradas, onde os fantasmas foram banidos pela claridade.

Mas me parece mesmo que transitamos entre os dois, como se nossa morada interior nos permitisse andar de um lugar para o outro, alternando-nos entre sonhos acalentados, esperança de afeto, e no momento seguinte um silêncio de portas fechadas.

O sinal abre e os carros se vão, alguns deixam a Paulista e pegam a Frei Caneca.
A senhora do carro prata continua em linha reta, sem olhar para o lado...
Talvez ainda esteja pensando no silêncio de ontem à noite...


"Eu sempre te disse que era grande o oceano para a nossa pequena barca."
Cecília Meireles



sábado, março 06, 2004

Boa intenção

Quando Maíra fez quinze anos, seu presente de aniversário foi uma viagem à Europa.

Havia muita expectativa das meninas nessa viagem pois seria a primeira viagem internacional delas, já que durante muitos anos elas ficavam com a avó aguardando nosso retorno. Além da saudade, cada retorno sempre tinha a expectativa de presentes, bonecas Barbie e estórias de montanhas, aventuras e lugares retratados nas cores que nossa modesta Olimpus Trip-35 conseguia registrar.

Essa viagem teria uma grande novidade para nós também: depois de rever amigos queridos na França partiriamos pela primeira vez rumo à Itália.

Isso significava que atravessaríamos os Alpes de carro no final do inverno.

O ritual de preparação da viagem incluiu a compra de casacos e roupas de inverno. Seria uma missão dificil para quem já tinha contabilizado no orçamento quatro bilhetes aéreos e hotel para 28 dias de viagem. Além disso, não é tarefa simples comprar roupa de inverno em Goiânia. Uma amiga deu a dica preciosa: vá ao Bazar do PT.

Assim, a fonte dos belos casacos de cashemere, dignos de enfrentar as nevascas do Alaska, foi um brechó do PT que recebia roupas de inverno doadas por europeus, e que sob o sol de Goiânia, não faziam nenhum sucesso.

No tal Bazar roupas de inverno de primeira linha eram vendidas por quase nada, por absoluta falta de mercado. Para minhas meninas experimentar e escolher as roupas de inverno foi uma festa. E eu me apaixonei perdidamente por um casaco verde.

Chegando em casa com meu elegante casaco, depois de buscá-lo da lavagem a seco, fui colocá-lo com todo cuidado no guarda-roupa, ainda no plástico protetor da lavanderia, à espera do dia de portá-lo nas montanhas nevadas de Chamonix.

O ato de colocá-lo no cabide e pendurá-lo me fez pensar no momento oposto, em que ele deixou uma casa européia para fazer sua viagem até Goiânia.

Tentei imaginar o momento em que uma senhorita ou senhora teria aberto seu guarda-roupa em algum lugar da Europa e escolhido entre as roupas dependuradas, as peças das quais ela poderia abrir mão.

Pelo estilo do casaco em tom verde escuro, bem cortado, etiqueta francesa, praticamente novo, ela não era uma operária. Certamente pôde escolher entre vários outros que possuía, ou porque não lhe faria falta, ou porque acreditava profundamente que sua generosidade faria a diferença de alguma forma.

Saberia ela que o destino de seu casaco seria uma doação para ser distribuída entre diversos partidos de esquerda no mundo, ou já teria a destinação expressa de ajudar os companheiros de esquerda que naquele início de 1994 tentavam estabelecer o Partido dos Trabalhadores no Brasil?

Pensaria ela que uma outra mulher, muito menos favorecida pela sorte, ficaria livre do frio no dia a dia de sua vida de operária, com aquele aconchegante casaco de cashemere? Ou pensava ela em uma outra mulher idealista, que também lutava pela causa dos pobres e oprimidos em terras distantes, sob inverno inclemente?

Ou ainda teria ela sido convencida da nobreza de seu gesto, a ponto de destinar seu melhor casaco para a causa do partido, ou seria ela alguma universitária que, nos anos 90, professava o ideal da esquerda, sob o teto de alguma casa rica, como parte do charme associado à visão de um mundo mais justo e igualitário?

Na segunda hipótese, talvez tenha ela separado o casaco, ao chegar em casa depois de uma longa discussão sobre os males do capitalismo, tema obrigatório em discussões de estudantes que se encontravam em bares fechados, encontráveis em qualquer cidade européia com uma boa universidade, onde se respirava uma fumaça de cigarros de cortar com faca.

Quis o destino que o tal casaco viesse parar sob o céu e o sol de Goiânia, nos ombros de uma senhora que estava a anos luz de lutar pelo futuro do PT e que comprara o casaco para consumar um dos ritos mais simbólicos da pequena burguesia: viagem à Europa para comemorar os quinze anos da filha.

E nesses dez anos o casaco foi um excepcional companheiro nas viagens de trabalho e de lazer. Até que nesse final de ano foi substituído por um novo, dessa vez adquirido em uma loja da Pensilvânia.

O novo casaco tinha a nobre missão de fazer bonito no casamento de minha filha, a mesma menina que, aos quinze anos me viu escolher o velho casaco verde, e que agora, aos 24 anos, me acompanhou na compra do novo.

De volta a Goiânia, o casaco verde encontrou finalmente seu destino: os ombros de Luíza, minha fiel escudeira há muitos anos, que torna possível que eu enfrente tantas lutas, com a retaguarda garantida, nos bons almoços que prepara e na casa mantida em ordem.

Também quis o destino que o tal casaco fosse fundamental em uma das situações mais constrangedoras que já vivi. Mas isso já é outra história, e um outro post...