sábado, maio 16, 2020

Uma criança idosa - Parte 3


Um milagre por dia

Hoje completa um mês do AVC de mamãe. Um longo e escorrido mês, onde esperança, fé e o carinho da família e dos amigos trouxeram a força necessária. Foi também um mês de inacreditáveis avanços. Quase um milagre por dia.

O primeiro diagnóstico pós AVC foi de altíssimo risco com as próximas 24 horas de absoluto cuidado e monitoramento na UTI e real possibilidade de que mamãe não sobreviveria.

Aprendemos que para o paciente com AVC existe uma escala de risco que muda com um ritmo mais ou menos constante. Primeiras 12 horas, 24 hs, 3, 7, 14 e 21 dias. Não tínhamos a menor ideia do que teríamos pela frente, o que aliás é uma boa coisa pois esse desconhecimento nos poupa algum sofrimento.

Nós todos da família passamos por várias fases mais ou menos nessa mesma escala. Viemos do atordoamento da primeira notícia para o desespero com a gravidade do quadro. Aos poucos a esperança nos animou e nos trouxe nova e boa perspectiva.

Mamãe tem 85 anos e apesar da excelente saúde tem a natural fragilidade que a idade impõe. Mas é uma mulher aguerrida, forte, lutadora e perseverante.
Sempre foi assim.

Mas uma doença grave é uma luta para a qual nunca estamos preparados, nem devemos estar. Há muitas outras provações na vida, mas certamente as mais duras são a perda de pessoas muito queridas e as doenças graves.

Felizmente ela não tem consciência o tempo todo do que aconteceu.

Nossa família se uniu em torno dela, com carinho e presença constantes. Seus nove filhos e os netos mais próximos estiveram ao seu lado em um revezamento continuo e estou certa de que essa proximidade foi muito importante para ela se sentir viva, amada e rodeada pelos seus.

É claro que na UTI as visitas eram restritas e curtas, os dias e as noites se misturavam numa continuidade interminável.

O hospital Santa Monica dispõe de uma UTI humanizada, separada das demais, para pacientes vítimas de AVC. Depois de uma semana mamãe podia receber três visitas por dia. Às 10h, ao meio dia e às 16h com duração de até meia hora. Na segunda semana ela passou a ser acompanhada por uma cuidadora, na UTI mesmo.

Estive com mamãe todos os dias desde que cheguei de viagem. Não foram fáceis os 21 dias de UTI.

Agora posso afirmar com certeza, e com conhecimento de causa, que essa provação não pode incluir nem desânimo nem falta de fé, senão a carga fica maior que podemos suportar. O apoio da família, dos amigos faz toda a diferença quando nos falta chão.

Nesses momentos o desânimo é o golpe de misericórdia que nos leva a desabar quando a paulada é grande. Todos nós temos nossas fraquezas e com certeza vacilamos diante de provações. A fé é um poderoso recurso para buscarmos o ânimo e a energia imprescindíveis para seguir em frente. Não estou falando da fé cega.

Esta faz muito bem, mas poucos são os que conseguem ter uma fé cega e inabalável.
Falo da fé humana, da fé que surge da fragilidade, da sensação de desamparo, que pede ajuda, que se deixa ajudar, que roga a Deus mais energia porque já não pode encontrá-la mais em si mesmo.

Quando se acredita com todas as forças de que dispomos nasce energia mesmo quando ela já se esgota. Essa fé é reconfortante e pode fazer uma enorme diferença nos momentos decisivos.

A frase biblica que diz que “a fé remove montanhas” tem todo sentido porque a fé movimenta a vontade que por sua vez arrebanha uma poderosa energia dentro de nós.
O medo paralisa e tem foco na sombra. A fé impulsiona e tem foco na luz. A fé pode ser traduzida como uma vontade firme de superar, de atravessar o vale escuro, de vencer a provação.

Passados os 21 dias mais dois no quarto e mamãe foi liberada para vir para nossa casa.
Na saída do hospital eu e o Beto agradecemos muito ao Dr. Pedro Jorge Gayoso, responsável pela UTI do Sta Mônica, que além da competência profissional sempre foi muito atencioso com mamãe e conosco.

Fiquei emocionada ao dizer a ele que não tínhamos como agradecer o cuidado dele que foi decisivo para a recuperação dela. E ele me respondeu que esse reconhecimento fazia valer seu esforço e dedicação.

Neste longo mês nosso lema tem sido uma luta e um vitória por dia e cada uma muito comemorada.
Um grupo whatsapp de toda a família para comemorar os avanços e um mais reservado, só dos irmãos para tratar também das dificuldades.

As visitas dos filhos e netos são sempre o ponto alto do dia dela. No domingo fizemos um almoço reunindo boa parte da família em torno dela para que ela se sentisse rodeada de afeto.

São muitas as vitórias a festejar até aqui: frases mais longas, uma volta no andador, sentar na mesa para a refeição, segurar a própria xicara, ler algumas manchetes da revista Veja.

As lutas também: muitas noites de insônia e de medo em que ela se agarrava a minha mão e pede que eu não deixasse só. Ou momentos em que chamava pelos filhos um a um, pedindo que a levasse para um lugar com mais ar pois estava sufocando.

Ou queria que desligássemos todos os computadores que estavam impedindo o seu sono – esse um resquício dos ruídos dos monitores da UTI com seus apitos a intervalos regulares.

O medo de ficar só e a falta de ar também um resquício do momento em que ela teve o AVC pois ela estava só, e já foi encontrada caída no chão. Mesmo durante o dia é preciso segurar sua mão quase todo o tempo para mantê-la mais calma.

Não tenho saído de casa em nenhuma hipótese. Durante o dia a ressaca da noite mal dormida me impede de levar minhas atividades adiante. Tenho vivido 24 horas por dia em torno de remédios, cuidados, atenção e alguma pesquisa na internet para entender melhor o que está acontecendo.

Mas o tempo todo agradecendo a Deus o privilégio de poder cuidar de minha mãe e contar com o apoio irrestrito do meu marido, das filhas e dos meus irmãos que estão sempre ajudando.

E principalmente pela sorte de não estar precisando ser cuidada, pelo contrário, tendo força e fé para ajudá-la.

terça-feira, 14 de março de 2017

Uma criança idosa - Parte 2

Caindo a ficha

Se você quiser saber como tudo começou, você pode conferir clicando aqui

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Mais uma noite em claro. Prática como sou aproveitei as horas em claro para organizar uma lista do que tinha que fazer durante o dia, além é claro de colocar a bagagem nas malas. Seria uma longa sexta feira pois o vôo da American Airlines iria decolar às 22h30.

Previsão de chegada em Brasília às 9 da manhã, mais 3 horas de carro até Goiânia. Recebemos a instrução de ir em casa e tomar um banho antes de ir ao hospital pois ambiente de aeroporto e avião tem bactérias e germes demais.

Uma hora da tarde estávamos na UTI para ver mamãe.
A imagem daquela senhorinha frágil e encolhida na cama da UTI foi de cortar o coração. Muito diferente da pessoa que um mês antes havia viajado sozinha para São Paulo para visitar os dois filhos que moram lá.

Ela havia me pedido a passagem aérea de presente de Natal. Ela sempre gostou de viajar e passou para os filhos a importância de ter mente aberta.

Aos 72 anos, minha mãe viajou sozinha em umas férias curtas para o Chile onde não conhece vivalma.

Filha de família pobre no interior de Goiás, D. Carmem passou a infância às margens do Parnaíba, em uma casinha de pau-a-pique.

Sem nenhum incentivo para isso, se afeiçoou aos livros, obtidos com dificuldade e lidos com a escassa luz de lamparina, sob as broncas do pai, preocupado com o consumo de querosene, coisa de luxo naquela época.
Aos 20 anos, seu primeiro parto foi de gêmeos, que morreram com menos de duas semanas de vida.

A próxima fui eu, doentinha e franzina. Nada parava no estômago da menina fragilzinha, sempre ameaçando ir seguir o mesmo caminho dos primogênitos.

Apavorada, D. Carmem tentou de tudo para dar sobrevida ao seu bebê. A eficiência da alquimia utilizada me garantiu um estômago de ema!

No total, oito filhos povoam a vida de D. Carmem, cada qual com sua série de filhos, garantindo muita gente à sua volta na sua terceira idade (ai de quem falar em velhice). O coração grande não se contentou com os oito filhos. Em tempos muito difíceis adotou uma afilhada, que considera como filha e que morou conosco desde os quatro anos de idade.

Quando apresentei a ela meu candidato a marido, ela se afeiçoou por ele de imediato e o adotou também.

O Beto e ela dividem o amor por livros e plantas.

Pois foi essa guerreira que estava na cama da UTI, meio confusa, meio lúcida, com os braços cheios de hematomas, a mão redonda de tão inchada.

Nos primeiros dias pós AVC é normal uma forte agitação do paciente, então ela estava amarrada na cama. Por determinação do médico estava sem a prótese dentária, uma espécie de de dentadura só que sustentada em implantes.

A falta dos dentes a deixava muito mais velha. Mamãe sempre foi muito vaidosa e jamais nos deixava vê-la sem sua prótese.

Perguntou se fomos bem de viagem e se o Sérgio, meu irmão caçula havia voltado da China. Pediu uma água gelada e um café quente. É claro que não podíamos atender nenhum dos dois pedidos.

Ficamos por dez minutos na UTI e fomos embora. Lá fora desabei de vez. O Christiano da The1 estava comigo e me abraçou carinhosamente.

Deus foi muito bondoso ao inventar as lágrimas pois chorar descomprime o peito e funciona como um banho de água morna: não cura a dor mas reconforta.

Já na sala reservada que a The1 mantém para seus clientes fui recuperando o controle. Tinha sido um golpe duro de aguentar, mesmo eu, um poço de racionalidade segundo meu marido.

Continua na parte 3

Uma criança idosa - Parte 1

O começo de tudo



Quem já viveu essa experiência sabe exatamente do que estamos falando.

Assim, depois de um AVC isquêmico, minha mãe de tornou uma criança que alterna lucidez com fantasia, momentos de calma com outros de completa agitação.

Ainda não entendemos muito bem como essa história começou.

Há muitos anos mamãe morava com meu irmão e passava o dia sozinha ou com a empregada.

Aos 85 anos estava lúcida e ativa. Cultivava suas rosas e plantas com amor desvelado, fazia palavras cruzadas, cozinhava, bordava e devorava livros e tinha uma alimentação muito saudável.  Às seis da tarde encerrava seu dia e ia assistir suas novelas favoritas ou ver filmes.

Sempre fez seus exames preventivos que terminavam sempre com elogios do médico. Mamãe, além de muito saudável sempre primou pelo otimismo e alto astral, mesmo em circunstâncias bem adversas.

De repente, um telefonema de minha filha Maíra liga o alarme: A vovó Carmem teve uma queda e está no Hospital. Em princípio não é grave, mas parece estar com uma hidrocefalia que precisa ser tratada por cirurgia. Atendi a ligação em Plantation na Florida, na noitinha de quarta-feira.

Minha filha não tinha muitas informações, mas seu tom era grave e indicava que havia mais do que aparentava. Assim liguei para minha irmã. Ela me tranquilizou, mas sua voz também indicava que as palavras não combinavam com sentimentos transmitidos pela voz.


Acusei o golpe com uma terrível enxaqueca e o máximo que consegui dormir naquela noite foram 2 horas. Meu marido também não conseguiu dormir. Passei parte da noite pesquisando vôos para nossa volta antecipada o mais breve possível, se possível no mesmo dia.

Se você nunca precisou fazer isso saiba que as companhias aéreas ganham muito dinheiro com as emergências. O valor do bilhete passa a ser cinco vezes ou mais o preço normal.

Na quinta de manhã antes de tomar café (a diferença de fuso era de 3 horas para menos) liguei para minha irmã para entender melhor a situação. Mamãe seria transferida para o Hospital Santa Mônica que teria melhores condições de atendê-la.

A noticia muito me alegrou pois o Haikal Helou, é um dos sócios do Santa Monica, é e meu amigo pessoal. Além disso, lá tem uma sala da The1 e poderíamos contar com a atenção especial do Christiano. 

A The1 sempre fez toda a diferença nos nossos problemas de saúde.

No Santa Mônica o diagnóstico do neurologista foi que mamãe teve um AVC Isquêmico e estava em estado grave. Ela não tinha caído e machucado como se pensava antes. Ela caiu em função do AVC.

Meu sobrinho a achou no chão logo no início e a acudiu. Mas todos pensaram que era uma queda sem graves consequências e ela foi ser examinada para verificar possíveis problemas decorrentes da queda.

Mamãe sempre foi muito independente e com seu otimismo nato sempre fazia questão de dizer que estava ótima.

Por último ela andava meio esquecidinha, falava a mesma coisa várias vezes. Mas encarávamos isso como algo natural da idade pois ela já tem 85 anos.  Em geral ela alternava os finais de semana na minha casa ou na casa de minha irmã, ou mesmo com algum dos seus 8 filhos.

Finalmente conseguimos vaga num vôo para o dia seguinte chegando em Goiânia no sábado de manhã.

Na noite de quinta minha irmã ligou para comunicar que o estado de mamãe havia se agravado muito e havia sérios riscos. Na UTI, estava sendo tratada para retirar água no pulmão, combater princípio de pneumonia, problemas de diurese e ainda com sangramento no cérebro pois começara um AVC hemorrágico também.
 
Aquela noite seria decisiva para ela.

Depois de desligar o telefone sai do hotel de carro, fui sozinha para um parque próximo, rezei e chorei muito.

sábado, fevereiro 05, 2011

Muito Especial

Ele me chamou atenção pela primeira vez no auditório da Escola de Engenharia, assistindo a uma aula de Geometria Analítica. Sentado ao meu lado, um jovem magrinho levanta o braço e dirige uma pergunta ao professor.

Era apenas um entre os quinhentos rapazes que freqüentavam as matérias do básico. Voz cheia, de locutor de rádio, firme, desproporcional ao corpo franzino. A pergunta era inteligente e mereceu uma longa dissertação do professor.

Semanas depois nos encontramos na sala de desenho técnico, matéria que era meu terror. Paciente, me deu algumas dicas preciosas sobre perspectiva.

Aos poucos fui sabendo mais sobre ele. Tinha entrado na Universidade com 17 anos. Morava na Casa do Estudante e não tinha dinheiro nem para o lanche.

Tentava de tudo para conseguir uns trocados, incluindo vender carnê do Baú da Felicidade. Já tinha sido ajudante no cultivo de horta e escrevera carta que os meninos do orfanato enviavam para os padrinhos americanos, ao estilo da personagem do filme Central do Brasil. Foi auxiliar de alfaiate (onde aprendeu a passar camisas como ninguém), auxiliar de eletricista e por último dava aulas de matemática e física.

Estava deslumbrado com a liberdade de morar sozinho e ainda era muito religioso. Até os seis anos fora criado pela avó. Aos sete anos foi morar num orfanato junto com outras 99 crianças. Para ele a figura de pai e mãe era do casal que dirigia a instituição, e a única noção de família vinha da figura querida da avó.

Aos quinze anos, conheceu a mãe biológica e desgostou um pouco do que encontrou. Talvez ela fosse muito diferente da imagem que tinha idealizado. Do pai nunca soube sequer o nome. Ficava constrangido ao preencher fichas de identificação e indicar “pai desconhecido”.

O orfanato, mantido por missionários americanos protestantes, proporcionava uma educação muito rígida e de muita disciplina, incentivando fortemente os estudos e a prática religiosa. No recreio e nas horas vagas seu lugar preferido era a biblioteca da escola.

Aos quinze anos foi para o seminário para se tornar pastor. Primeiro porque era excelente orador, depois porque era excelente aluno: terminou o ginásio com média global 98, feito inédito até então.

Depois de dois anos no seminário desistiu de ser pastor. Queria ir morar na capital, entrar na Universidade, ser Físico Nuclear, experimentar a vida, viver por si mesmo.

Comeu o pão que o diabo amassou. Morou de favor aqui e ali até conseguir uma vaga na Casa do Estudante. Quando o conheci, já dava aulas de física numa escola de segundo grau.

Seu guarda-roupa tinha duas camisas, duas calças de brim, uma jaqueta jeans e um gravador de fita cassete (um Evadin) comprado a prestação. E muitos, muitos livros...

Sempre foi especial em tudo, até nos exageros.

Na busca de ganhar melhor passou num concurso para escrivão. De manhã era aluno da Física e militante de esquerda (um socialista cristão). À tarde, era escrivão, obrigado a ouvir os depoimentos dos presos da ditadura, no auge da repressão. Fazia o que podia...

Várias vezes foi repreendido pelo seu chefe, por participar de passeatas de estudantes. Com seu jeito de bom menino acabava por conquistar as pessoas e sempre achou quem o protegesse do pior. Até que um dia não suportou mais a pressão e se demitiu.

Foi trabalhar na Caixa Federal. Para desespero geral desistiu do curso de Física no semestre da formatura.

Foi começar tudo de novo no curso de Publicidade. Em pouco tempo obteve quatro diplomas: Publicidade, Relações Publicas, Jornalismo, Radialismo.

Foi aluno do primeiro MBA da FGV em Goiânia e as estantes para os seus livros já ocupavam uma parede na nossa casa.

Fez carreira na Caixa. Chegou a assessoria de imprensa da Presidência da CEF. Um dia, teve que escolher entre manter o cargo ou continuar a participar da liderança dos movimentos de esquerda. Deixou o cargo.

Idealista, sempre acreditou que podia fazer a diferença.

Aos poucos foi encontrando seu lugar no mundo.

Sempre foi um pai carinhoso e dedicado das duas encantadoras filhas e sem sombra de dúvida é um avô nota dez.

Publicou dois livros de poesia, tornou-se católico, desistiu da militância de esquerda, trabalha como um danado na empresa da qual é sócio e acredita que seu papel hoje é gerar empregos.

Dezenas de viagens ajudaram a aprimorar o domínio de francês, inglês e espanhol. Agora está aprendendo italiano. Apesar do pouco tempo livre que tem, nunca deixou de lado a literatura, sua grande paixão.

Sabe escolher e servir um bom vinho, adora Mozart, mantém o espírito divertido e o charme de sempre, já não é mais tão magrinho, e conseguiu um tom prateado nos cabelos.

E neste sábado ensolarado, a nossa casa parece cem vezes maior com a sua ausência.

Mas a sua presença na Flórida é de grande importância para ajudar o Craig e o Lucas enquanto a Maíra está no hospital aguardando a chegada do Benjamin.

E eu só posso agradecer a Deus todos os dias por ter na minha vida alguém tão especial, o meu Beto, ainda mais no dia de hoje, em que comemoramos o seu aniversário de 56 anos.

Feliz aniversário!!!

quarta-feira, agosto 23, 2006

A ARTE DE SER AVÓ

Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...

Cinquenta anos, cinquenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações — todos dizem isto embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto — mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meus Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aquelas crianças que você recorda.
E então um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis — aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho certeza que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que os netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos.

No entanto — no entanto! — nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, a rival: a mãe. Não importa que ela seja sua filha. Não deixa por isso de ser mãe do seu neto. Não importa que ela ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais.

Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais.

A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avô, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto.
Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia.

Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café — café! — mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser e até fingir que está discando o telefone.

Riscar a parece com o lápis dizendo que foi sem querer — e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna.

Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto.

E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade e apoio... Além é claro das compensações....

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho — involuntariamente! — bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois, o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó?

Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.


Texto de Raquel de Queiroz
Descoberto no momento de minhas reflexões como avó

quinta-feira, abril 06, 2006

Tanajuras Fritas



Dia nublado, prometendo chuvinha constante e insistente. Dia típico que as crianças detestam pois significa ficar trancadas em casa, na frente da TV, meio sonolentas, sem grandes perspectivas.

O cinza se espalha um pouco sobre a gente, diminuindo a luz externa, predispondo à introspecção nostálgica.

Abro a janela aos poucos, olhando para essa nublada manhã de sábado. Um barulhinho esforçado de asas chama a atenção, e aos poucos um inseto consegue levantar um vôo atrapalhado, mambembe, para se esborrachar no chão da sala. Era uma tanajura.

Olho com mais cuidado para o bichinho que virou símbolo da mulher de cintura fina e quadril largo. Há quanto tempo não revia esse inseto?

Olhando para a formiga alada viajo para minha infância, quando saía em busca de encontrá-las, com um vidrinho na mão, morta de medo que usassem o ferrão.

Meia dúzia de tanajuras no vidrinho valia um capítulo extra das longas estórias contadas por nosso vizinho baiano, apreciador ferrenho de uma fritada de tanajuras, iguaria esperada ansiosamente por ele e disponível somente em um curto período do ano.

Pois nosso vizinho baiano era pedreiro de profissão, morava sozinho num barracão nos fundos da casa da vizinha. Talvez tivesse uns 40 anos e era muito religioso. Chegava em casa às cinco da tarde, tomava banho, pegava seu fumo de corda e se sentava numa cadeira no alpendre da nossa casa, à espera da garotada.

Éramos uma meia dúzia de crianças na faixa de seis anos de idade. Era o final dos anos 50, e a TV ainda era privilégio de poucos. As estórias eram uma atração e tanto, ainda mais os enredos complexos e fantásticos de nosso amigo.

Havia regras bastante rígidas para participar do atento grupo de ouvintes: ter tomado banho, estar com os deveres escolares prontos e ter expressa autorização materna para cada sessão. Naturalmente, isso proporcionava às mães a oportunidade de negociar a concessão como um prêmio por bom comportamento.

As estórias eram contadas em capítulos e duravam semanas com peripécias ainda hoje presentes na minha frágil memória. Sempre havia um personagem de bom coração que enfrentava todas as peripécias possíveis em um mundo imaginário de inimigos cruéis. Mas o bem sempre vencia e o final era sempre feliz.

O grand finale era sempre no sábado, com mais tempo disponível, já que uma vez que escurecesse devíamos ir para a cama.

Mas no tempo das tanajuras a rotina se modificava. O dia continuava claro até sete horas da noite. Na folga da escola a meninada saia atrás das grandes formigas aladas que á noite iriam para a frigideira de nosso contador de estórias. Como recompensa pelo nosso esforço em garantir a rara iguaria, ele se desdobrava em capítulos mais emocionantes, que misturavam perigo, aventura, romance e busca incessante pelos ideais dos heróis, que sempre eram pessoas de carater louvável.

Uma aura de magia, fantasia, aventuras e desventuras, perigos inimagináveis nos transportavam para um mundo onde tudo podia acontecer.

Recheadas de conteúdo educativo e repletas de mensagens que ressaltavam valores fundamentais para o ser humano, as tais estórias aos poucos modelavam nossa visão do mundo.

O registro emocional que tenho ainda hoje desses finais de tarde desperta meus melhores sentimentos.

Sem o dom natural daquele bom homem, me esforcei muito para criar estórias e contá-las para minhas filhas. Muitas vezes dormi antes das meninas, sem concluir o enredo imaginado no carro, ao voltar do trabalho. Também lia os contos de Grim e as deliciosas estórias publicadas quinzenalmente pela revista Alegria.

Há pouco tempo atrás fiquei muito feliz pois minha filha mais velha se lembrava de um dos personagens, a sapinha Cristina.

Fico pensando hoje no potencial que as estórias têm de passar conceitos, e como podem ser importantes para imprimir, de forma profunda, os valores nos quais acreditamos. Nessa fase, as crianças não têm tantos filtros e barreiras que irão adquirir com o tempo.

Mas infelizmente temos terceirizado para a TV uma parte da missão de moldar os valores de nossas crianças.

Olho de novo para a tanajura que está parada no piso da sala, na mesma posição, meio debilitada. Uma nesga de sol se esgueira pela copa da árvore e abre uma área iluminada na grama. Com cuidado pego o bichinho e consigo devolvê-lo ao jardim...


domingo, outubro 02, 2005

De chuvas e ciclos


Pela janela vejo as folhas das árvores cairem às dúzias sacudidas por um vento forte. Olho para um céu ameaçador carregado de nuvens muito escuras, anunciando tempestade daquelas.

Não tenho medo, ao contrário. Sempre gostei das tempestades. Sempre me pareceram uma demonstração de força da natureza, uma forma de deixar claro quem tem a primazia num mundo em que os humanos parecem ter controle de tudo. De vez em quando a natureza se encarrega de nos obrigar a reconstruir, talvez para nos lembrar de não destruir.

Quase seis da tarde. Os tons cinza chumbo me obrigam a acender algumas luzes. Será a primeira grande chuva da temporada. Ainda não testamos a qualidade do telhado nem o escoamento de aguas da chuva na nova casa. Espero não ter nenhuma surpresa.

No cerrado, as chuvas terminam em abril e recomeçam em setembro. Às vezes começam de mansinho, um chuvisco de nada. Ou esperam um dia muito abafado como o dia de hoje para fazer uma estréia triunfal, digna de uma ópera de Wagner. Em Goiania nunca temos inundações pra valer. Há muita área permeável e estamos longe de rios. Temos uns riachinhos de nada, que ás vezes até dão trabalho, mas não passa disso.

Então a chuva tem sempre um sentido positivo, de fecundidade, de oposição ao período da seca. Gosto de ver as gotas caindo. Quando criança ficava com o rosto colado na janela olhando para toda aquela água caindo com força. Á noite, gostava de ver os raios e os imaginava muito importantes para se fazerem anunciar com tanta pompa pelos trovões.

Pela manhã, o céu azul convidava a inspecionar as formigas, que no dia seguintes ás grandes chuvas de setembro, apareciam com asas e infernizavam a vida de minha mãe, que tinha que varrer as asas perdidas e espalhadas por toda a casa.

Ainda hoje não sei porque as formigas ganham asas nas noites de grande chuva...

Quando adolescente, um amigo querido me disse não gostar das tempestades. Ele as julgava um preço alto demais a pagar pelos dias de sol. Então dizia preferir todos os dias nublados. Na verdade, essa era uma forma de fugir de decepções, quase uma doutrina do tipo "melhor não ter para não perder".

Nunca consegui compartilhar desse sentimento. Os dias de sol trazem um encantamento às pessoas, às plantas e à vida. A chuva não é um preço a pagar. É um contraponto. Como ilusão e decepção. Esperança e lágrimas. Amor e abandono.

Como seria uma vida sem amores nem dissabores? Sem altos e baixos?

O cerrado é pleno de constrastes e de ciclos muito claros. Os mesmos campos que hoje estão ressequidos, semi mortos, soterrados sob um lençol de folhas secas, vão despertar após a primeira grande chuva e preencher a paisagem com um verde novinho, verde alvissareiro de folha recem nascida.

E em poucos dias tudo renasce sob o som estridente das cigarras, arautos infaliveis da primavera, trazendo à alma o sentimento de renovação, de recomeço, de novo ciclo...

quarta-feira, junho 22, 2005

Do adeus dos outros


Me impressionou profundamente o título do post do Milton: "o adeus dos outros" publicado há tempos atrás. O post aborda o tema "blogar or not" mas pende para um outro assunto de forte relevância, muitissimo humano e presente nas nossas vidas: persistir ou desistir.

Há muitos anos atrás li a frase: " A escolha traz em si uma perda" e pela primeira vez fui levada a pensar no "preço" de algumas escolhas que fazemos. Quando oscilamos entre desistir ou persistir não estamos fazendo mais que avaliar que preço estamos dispostos a pagar pela escolha de levar adiante um sonho, um afeto, um projeto, quando já não parece tão leve o fardo. Se estivesse leve não havia porque se questionar.

Raramente questionamos a leveza, o prazer, o afeto, a comunhão. Estas são fontes nas quais bebemos sempre com avidez. Questionamos o prazer dificil, o afeto raro, o sonho adiado, o projeto sacrificante, a aridez, a carência, a não sintonia.

E o que é "o adeus dos outros", senão uma prévia dolorida do nosso adeus, e uma forma terceirizada de reavaliar as escolhas que fazemos, e reiterá-las ou não. Ás vezes devemos perseverar, e de alguma forma encontrar forças para manter afetos, sonhos e projetos. Ás vezes devemos dizer adeus, ainda que olhando para trás...

E o meu mais novo aprendizado, fruto de algumas perdas de dificil reparação, me ensinou que existe ainda uma terceira alternativa: a de voltar atrás em algumas escolhas feitas, e, se a vontade for suficiente, ter coragem para retomar, reatar, reiniciar, reviver...

P.S. - Republicação para testar se o blog ainda está vivo


sábado, fevereiro 12, 2005

Cores do mundo interior

Como não tinha percebido antes?

Há uma cor para cada fase da vida, para a natureza e para as faces do mundo interior.

No inicio da vida adulta a descoberta do lilás: mistura equilibrada de rosa e azul claro, a combinação perfeita para definir o encontro do masculino e femino. Lilás nas cortinas e na cama. E a profunda busca de encontrar a alma irmã, o lado azul claro que me faltava...

Com vinte anos dominavam os tons das folhas dos plátanos em todas as suas variações definindo o estado de espírito da estação. O verde brilhante indicava os tempos com sol. Nas ruas de Porto Alegre, as folhas no chão indicavam que o semestre estava próximo de terminar, e com ele as temíveis provas da Escola de Engenharia.

Depois dos 30 anos a força do vermelho e do tons alaranjados orquestravam uma certa ode aos sentimentos contraditórios. Ás vezes nas roupas, o dominio das cores quentes predominavam nos conflitos interiores e na insana luta do cotidiano.

Perto dos 40 anos predominaram os tons amarelo queimado, como se aos poucos as chamas fossem cedendo lugar ao caramelo que passou a vestir as cadeiras e as camas da casa.

Numa fase já mais recente, pós 50, o branco e preto, simples, sóbrio, minimalista, passou a definir uma escolha de quem não quer se perder nos detalhes, pois não tem mais todo o tempo necessário para descobrir o mundo...

Como não tinha percebido antes?


sábado, fevereiro 05, 2005

O primeiro meio século

Zadig faz 50 anos


E o que posso fazer é tentar almofadar ainda mais a sua vida...