sábado, maio 16, 2020

Uma criança idosa - Parte 3


Um milagre por dia

Hoje completa um mês do AVC de mamãe. Um longo e escorrido mês, onde esperança, fé e o carinho da família e dos amigos trouxeram a força necessária. Foi também um mês de inacreditáveis avanços. Quase um milagre por dia.

O primeiro diagnóstico pós AVC foi de altíssimo risco com as próximas 24 horas de absoluto cuidado e monitoramento na UTI e real possibilidade de que mamãe não sobreviveria.

Aprendemos que para o paciente com AVC existe uma escala de risco que muda com um ritmo mais ou menos constante. Primeiras 12 horas, 24 hs, 3, 7, 14 e 21 dias. Não tínhamos a menor ideia do que teríamos pela frente, o que aliás é uma boa coisa pois esse desconhecimento nos poupa algum sofrimento.

Nós todos da família passamos por várias fases mais ou menos nessa mesma escala. Viemos do atordoamento da primeira notícia para o desespero com a gravidade do quadro. Aos poucos a esperança nos animou e nos trouxe nova e boa perspectiva.

Mamãe tem 85 anos e apesar da excelente saúde tem a natural fragilidade que a idade impõe. Mas é uma mulher aguerrida, forte, lutadora e perseverante.
Sempre foi assim.

Mas uma doença grave é uma luta para a qual nunca estamos preparados, nem devemos estar. Há muitas outras provações na vida, mas certamente as mais duras são a perda de pessoas muito queridas e as doenças graves.

Felizmente ela não tem consciência o tempo todo do que aconteceu.

Nossa família se uniu em torno dela, com carinho e presença constantes. Seus nove filhos e os netos mais próximos estiveram ao seu lado em um revezamento continuo e estou certa de que essa proximidade foi muito importante para ela se sentir viva, amada e rodeada pelos seus.

É claro que na UTI as visitas eram restritas e curtas, os dias e as noites se misturavam numa continuidade interminável.

O hospital Santa Monica dispõe de uma UTI humanizada, separada das demais, para pacientes vítimas de AVC. Depois de uma semana mamãe podia receber três visitas por dia. Às 10h, ao meio dia e às 16h com duração de até meia hora. Na segunda semana ela passou a ser acompanhada por uma cuidadora, na UTI mesmo.

Estive com mamãe todos os dias desde que cheguei de viagem. Não foram fáceis os 21 dias de UTI.

Agora posso afirmar com certeza, e com conhecimento de causa, que essa provação não pode incluir nem desânimo nem falta de fé, senão a carga fica maior que podemos suportar. O apoio da família, dos amigos faz toda a diferença quando nos falta chão.

Nesses momentos o desânimo é o golpe de misericórdia que nos leva a desabar quando a paulada é grande. Todos nós temos nossas fraquezas e com certeza vacilamos diante de provações. A fé é um poderoso recurso para buscarmos o ânimo e a energia imprescindíveis para seguir em frente. Não estou falando da fé cega.

Esta faz muito bem, mas poucos são os que conseguem ter uma fé cega e inabalável.
Falo da fé humana, da fé que surge da fragilidade, da sensação de desamparo, que pede ajuda, que se deixa ajudar, que roga a Deus mais energia porque já não pode encontrá-la mais em si mesmo.

Quando se acredita com todas as forças de que dispomos nasce energia mesmo quando ela já se esgota. Essa fé é reconfortante e pode fazer uma enorme diferença nos momentos decisivos.

A frase biblica que diz que “a fé remove montanhas” tem todo sentido porque a fé movimenta a vontade que por sua vez arrebanha uma poderosa energia dentro de nós.
O medo paralisa e tem foco na sombra. A fé impulsiona e tem foco na luz. A fé pode ser traduzida como uma vontade firme de superar, de atravessar o vale escuro, de vencer a provação.

Passados os 21 dias mais dois no quarto e mamãe foi liberada para vir para nossa casa.
Na saída do hospital eu e o Beto agradecemos muito ao Dr. Pedro Jorge Gayoso, responsável pela UTI do Sta Mônica, que além da competência profissional sempre foi muito atencioso com mamãe e conosco.

Fiquei emocionada ao dizer a ele que não tínhamos como agradecer o cuidado dele que foi decisivo para a recuperação dela. E ele me respondeu que esse reconhecimento fazia valer seu esforço e dedicação.

Neste longo mês nosso lema tem sido uma luta e um vitória por dia e cada uma muito comemorada.
Um grupo whatsapp de toda a família para comemorar os avanços e um mais reservado, só dos irmãos para tratar também das dificuldades.

As visitas dos filhos e netos são sempre o ponto alto do dia dela. No domingo fizemos um almoço reunindo boa parte da família em torno dela para que ela se sentisse rodeada de afeto.

São muitas as vitórias a festejar até aqui: frases mais longas, uma volta no andador, sentar na mesa para a refeição, segurar a própria xicara, ler algumas manchetes da revista Veja.

As lutas também: muitas noites de insônia e de medo em que ela se agarrava a minha mão e pede que eu não deixasse só. Ou momentos em que chamava pelos filhos um a um, pedindo que a levasse para um lugar com mais ar pois estava sufocando.

Ou queria que desligássemos todos os computadores que estavam impedindo o seu sono – esse um resquício dos ruídos dos monitores da UTI com seus apitos a intervalos regulares.

O medo de ficar só e a falta de ar também um resquício do momento em que ela teve o AVC pois ela estava só, e já foi encontrada caída no chão. Mesmo durante o dia é preciso segurar sua mão quase todo o tempo para mantê-la mais calma.

Não tenho saído de casa em nenhuma hipótese. Durante o dia a ressaca da noite mal dormida me impede de levar minhas atividades adiante. Tenho vivido 24 horas por dia em torno de remédios, cuidados, atenção e alguma pesquisa na internet para entender melhor o que está acontecendo.

Mas o tempo todo agradecendo a Deus o privilégio de poder cuidar de minha mãe e contar com o apoio irrestrito do meu marido, das filhas e dos meus irmãos que estão sempre ajudando.

E principalmente pela sorte de não estar precisando ser cuidada, pelo contrário, tendo força e fé para ajudá-la.

terça-feira, 14 de março de 2017

Uma criança idosa - Parte 2

Caindo a ficha

Se você quiser saber como tudo começou, você pode conferir clicando aqui

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Mais uma noite em claro. Prática como sou aproveitei as horas em claro para organizar uma lista do que tinha que fazer durante o dia, além é claro de colocar a bagagem nas malas. Seria uma longa sexta feira pois o vôo da American Airlines iria decolar às 22h30.

Previsão de chegada em Brasília às 9 da manhã, mais 3 horas de carro até Goiânia. Recebemos a instrução de ir em casa e tomar um banho antes de ir ao hospital pois ambiente de aeroporto e avião tem bactérias e germes demais.

Uma hora da tarde estávamos na UTI para ver mamãe.
A imagem daquela senhorinha frágil e encolhida na cama da UTI foi de cortar o coração. Muito diferente da pessoa que um mês antes havia viajado sozinha para São Paulo para visitar os dois filhos que moram lá.

Ela havia me pedido a passagem aérea de presente de Natal. Ela sempre gostou de viajar e passou para os filhos a importância de ter mente aberta.

Aos 72 anos, minha mãe viajou sozinha em umas férias curtas para o Chile onde não conhece vivalma.

Filha de família pobre no interior de Goiás, D. Carmem passou a infância às margens do Parnaíba, em uma casinha de pau-a-pique.

Sem nenhum incentivo para isso, se afeiçoou aos livros, obtidos com dificuldade e lidos com a escassa luz de lamparina, sob as broncas do pai, preocupado com o consumo de querosene, coisa de luxo naquela época.
Aos 20 anos, seu primeiro parto foi de gêmeos, que morreram com menos de duas semanas de vida.

A próxima fui eu, doentinha e franzina. Nada parava no estômago da menina fragilzinha, sempre ameaçando ir seguir o mesmo caminho dos primogênitos.

Apavorada, D. Carmem tentou de tudo para dar sobrevida ao seu bebê. A eficiência da alquimia utilizada me garantiu um estômago de ema!

No total, oito filhos povoam a vida de D. Carmem, cada qual com sua série de filhos, garantindo muita gente à sua volta na sua terceira idade (ai de quem falar em velhice). O coração grande não se contentou com os oito filhos. Em tempos muito difíceis adotou uma afilhada, que considera como filha e que morou conosco desde os quatro anos de idade.

Quando apresentei a ela meu candidato a marido, ela se afeiçoou por ele de imediato e o adotou também.

O Beto e ela dividem o amor por livros e plantas.

Pois foi essa guerreira que estava na cama da UTI, meio confusa, meio lúcida, com os braços cheios de hematomas, a mão redonda de tão inchada.

Nos primeiros dias pós AVC é normal uma forte agitação do paciente, então ela estava amarrada na cama. Por determinação do médico estava sem a prótese dentária, uma espécie de de dentadura só que sustentada em implantes.

A falta dos dentes a deixava muito mais velha. Mamãe sempre foi muito vaidosa e jamais nos deixava vê-la sem sua prótese.

Perguntou se fomos bem de viagem e se o Sérgio, meu irmão caçula havia voltado da China. Pediu uma água gelada e um café quente. É claro que não podíamos atender nenhum dos dois pedidos.

Ficamos por dez minutos na UTI e fomos embora. Lá fora desabei de vez. O Christiano da The1 estava comigo e me abraçou carinhosamente.

Deus foi muito bondoso ao inventar as lágrimas pois chorar descomprime o peito e funciona como um banho de água morna: não cura a dor mas reconforta.

Já na sala reservada que a The1 mantém para seus clientes fui recuperando o controle. Tinha sido um golpe duro de aguentar, mesmo eu, um poço de racionalidade segundo meu marido.

Continua na parte 3

Uma criança idosa - Parte 1

O começo de tudo



Quem já viveu essa experiência sabe exatamente do que estamos falando.

Assim, depois de um AVC isquêmico, minha mãe de tornou uma criança que alterna lucidez com fantasia, momentos de calma com outros de completa agitação.

Ainda não entendemos muito bem como essa história começou.

Há muitos anos mamãe morava com meu irmão e passava o dia sozinha ou com a empregada.

Aos 85 anos estava lúcida e ativa. Cultivava suas rosas e plantas com amor desvelado, fazia palavras cruzadas, cozinhava, bordava e devorava livros e tinha uma alimentação muito saudável.  Às seis da tarde encerrava seu dia e ia assistir suas novelas favoritas ou ver filmes.

Sempre fez seus exames preventivos que terminavam sempre com elogios do médico. Mamãe, além de muito saudável sempre primou pelo otimismo e alto astral, mesmo em circunstâncias bem adversas.

De repente, um telefonema de minha filha Maíra liga o alarme: A vovó Carmem teve uma queda e está no Hospital. Em princípio não é grave, mas parece estar com uma hidrocefalia que precisa ser tratada por cirurgia. Atendi a ligação em Plantation na Florida, na noitinha de quarta-feira.

Minha filha não tinha muitas informações, mas seu tom era grave e indicava que havia mais do que aparentava. Assim liguei para minha irmã. Ela me tranquilizou, mas sua voz também indicava que as palavras não combinavam com sentimentos transmitidos pela voz.


Acusei o golpe com uma terrível enxaqueca e o máximo que consegui dormir naquela noite foram 2 horas. Meu marido também não conseguiu dormir. Passei parte da noite pesquisando vôos para nossa volta antecipada o mais breve possível, se possível no mesmo dia.

Se você nunca precisou fazer isso saiba que as companhias aéreas ganham muito dinheiro com as emergências. O valor do bilhete passa a ser cinco vezes ou mais o preço normal.

Na quinta de manhã antes de tomar café (a diferença de fuso era de 3 horas para menos) liguei para minha irmã para entender melhor a situação. Mamãe seria transferida para o Hospital Santa Mônica que teria melhores condições de atendê-la.

A noticia muito me alegrou pois o Haikal Helou, é um dos sócios do Santa Monica, é e meu amigo pessoal. Além disso, lá tem uma sala da The1 e poderíamos contar com a atenção especial do Christiano. 

A The1 sempre fez toda a diferença nos nossos problemas de saúde.

No Santa Mônica o diagnóstico do neurologista foi que mamãe teve um AVC Isquêmico e estava em estado grave. Ela não tinha caído e machucado como se pensava antes. Ela caiu em função do AVC.

Meu sobrinho a achou no chão logo no início e a acudiu. Mas todos pensaram que era uma queda sem graves consequências e ela foi ser examinada para verificar possíveis problemas decorrentes da queda.

Mamãe sempre foi muito independente e com seu otimismo nato sempre fazia questão de dizer que estava ótima.

Por último ela andava meio esquecidinha, falava a mesma coisa várias vezes. Mas encarávamos isso como algo natural da idade pois ela já tem 85 anos.  Em geral ela alternava os finais de semana na minha casa ou na casa de minha irmã, ou mesmo com algum dos seus 8 filhos.

Finalmente conseguimos vaga num vôo para o dia seguinte chegando em Goiânia no sábado de manhã.

Na noite de quinta minha irmã ligou para comunicar que o estado de mamãe havia se agravado muito e havia sérios riscos. Na UTI, estava sendo tratada para retirar água no pulmão, combater princípio de pneumonia, problemas de diurese e ainda com sangramento no cérebro pois começara um AVC hemorrágico também.
 
Aquela noite seria decisiva para ela.

Depois de desligar o telefone sai do hotel de carro, fui sozinha para um parque próximo, rezei e chorei muito.