domingo, dezembro 14, 2003

até janeiro...

O dia está pequeno para tudo que tenho pela frente.

Fechamento do ano na empresa, providências domésticas, compras de presentes.
Na quarta-feira, pegamos as malas e os casacos e nos mandamos para as montanhas nevadas da Pennsylvania onde nos esperam Maíra e Craig.

Estou morrendo de vontade de dar um abraço forte, de ursinho, neles.



Este foi um ano muito louco, cheio de golpes duros, mas também de muitas e deliciosas alegrias. Dentre elas, conhecer gente maravilhosa ainda que à distância .

Quando estiver por lá, espero conseguir algumas oportunidades para ler os blogs dos amigos:
Sena - Você e a Lua são D+. Vou sentir falta de nossos happy-hours.
César - Meu abraço muito carinhoso. Há quinze anos consigo gostar cada vez mais de você...
Milton - Cult sem perder a emoção das pequenas alegrias.
Guiu - de uma sensibilidade e bom gosto completamente apaixonantes
Alma - E seu mapeamento emotivo de Paris e sua Penélope
Ana - E sua estante sempre rica de informações
Lilia - De quem roubei a foto da neve publicada acima. Quando eu chegar lá onde ela mora, ela estará curtindo as praias do Nordeste...
Marcos - Que demora muito a postar, é quase como eu...
Sérgio - que mantém o fantástico Papel de Pão

E minhas duas últimas descobertas:

Laura - Recém chegada à blogsfera mas que estilo!
Rodrigo - um texto nota dez sempre na segunda pessoa (Ai saudades do RS!!!).

P.P. Levo o Zadig comigo...

sábado, novembro 29, 2003

da sensação de Lar

Um dia alguém criou a palavra lar para diferenciar o lugar psicológico do imóvel.

Lar é um conjunto de cheiros, cores, sons, formas e, principalmente, de sentimentos. É um estado de espírito, uma sensação de intimidade, de aconchego e de proteção.

O lar é onde a vida começa e termina; é o principal referencial de existência da espécie humana, na medida em que é uma forma concreta do abrigo, da proteção contra as intempéries e outros perigos potenciais. O lar é o pivô de uma rotina diária. Vamos a todos os tipos de lugares mas sempre retornamos ao lar.

Acho que essa sensação que se quer passar quando se fala "do repouso do guerreiro".

Anos atrás, numa viagem com duração de quase dois meses, em que se sucediam cidades, hotéis, estradas, línguas diferentes, um certo desconforto e irritação começou a se instalar em nosso espírito. A única referência constante era o carro, que passou a representar de forma canhestra o papel de lar pois era para onde voltávamos sempre.

Hoje, depois de três dias no hospital, em função de uma cirurgia de apêndice, pude sentir a força da atenção e do carinho que recebi da minha família, dos amigos e, principalmente, do meu companheiro há 28 anos, que fez plantão em período integral ao meu lado.

E hoje, ao entrar em casa, coisas banais como um café quentinho, o latido do Balzac, a maciez da cama, as flores do jardim e, até mesmo, uma musiquinha banal do Elton John me pareceram amostras do paraíso.



segunda-feira, novembro 24, 2003

da ausência de inspiração

Ás vezes é frustrante a absoluta falta de um tema que puxe o fio do novelo para um post decente, principalmente para quem se intitula Sherazade - a contadora de estórias.

Sempre gostei muito de estórias, de ouvi-las e de contá-las.

E o espírito humano criou infinitas formas de contar estórias, chegando hoje a um inacreditável volume dividido entre os livros, o cinema, o teatro, a tv, as diversas formas escritas, incluindo os folhetins e a mais recente versão eletrônica: os blogs.

Em algumas pessoas há uma ansiedade considerável por publicar, com temas interessantes acumulados em filas respeitáveis, aguardando a sua vez de serem desvendados na blogsfera...

Para essas pessoas tudo é tema interessante, e é fácil começar a esticar o fio de Ariadne sem medo de se perder no labirinto do seu universo interior, este grande fermentador do impulso por comunicar.

Nele as percepcções se organizam e se misturam como correntes de águas multicoloridas, gerando formas e deformando as imagens recem criadas.

Mas ás vezes esse universo interior se recolhe atrás de alguma porta imaginária, como que a se esconder da página branca, desafiadora, plena de armadilhas...

Falar de que? Porque?

E permanece a página em branco...




terça-feira, novembro 18, 2003

Minha Menina

Minha menina vai se casar...

Assim, no meio da tarde, no meio do serviço, fico sabendo que meu bebê de 24 anos vai se casar. O anúncio feito por telefone tinha um tom emocionado na voz. Um tom trêmulo indicava forte emoção, dela e nossa.

É claro que esperávamos por isso há algum tempo.

Completamente apaixonada, ela achou a alma gêmea e está feliz como nunca.

O casamento foi decidido esta semana e será ainda em dezembro. Porque essa correria? Além de estarem absolutamente enamorados, meu futuro genro terá que mudar para o Texas no inicio do ano. Assim, decidiram casar logo e irem juntos.

Mas por mais que eu pense nisso, ainda estou sem acreditar: minha menina vai se casar e vai continuar morando nos Estados Unidos. Daqui a pouco assumirá as responsabilidades de esposa.

Há cinco anos atrás, quando a levamos para fazer o teste para a Universidade da Carolina do Sul, era ainda uma garotinha assustada com o fato de viver sozinha em outro país e ao mesmo tempo realizando o seu grande sonho. Dez dias depois ligava em prantos, querendo voltar e desistir de tudo. Na época eu disse a ela que se ela voltasse sem nem tentar superar as primeiras barreiras, ela passaria o resto da vida imaginando como teria sido se ela tivesse ficado...

E ficou. Para nós era o desafio de nos ver vermos só uma vez por ano. Por outro lado o Natal e o final de ano passaram a ter outro brilho: todos contando os dias para sua chegada.

Do aeroporto vamos sempre para a confeitaria para ela matar a vontade de comer empadinha, quibe e guaraná. Depois uma churrascaria. A irmã mais nova ri dessa agonia para comer tudo no primeiro dia, talvez por não compreender que não se trata só de comer, mas de sentir de perto um mundo de conexões com o lugar, as pessoas, os hábitos, os cheiros.

Agora estamos diante de um fato concreto que nos indica com todas as letras que nossa menina cresceu, e nos seus esplêndidos 24 anos, está adulta e vai se casar. A razão nos diz que isso é excelente, o namorado é uma pessoa excepcional, estão muitissimo apaixonados e têm tudo para serem muito felizes.

É claro que estamos contentes com tudo isso. Com a felicidade dela, que se descreve como caminhando em nuvens, numa taxa de felicidade inimaginável. Com a surpresa da irmã, que já está pensando na viagem para a Pensylvania, no vestido de dama de honra e em um arsenal de outros detalhes. Mas eu não consigo ainda pensar em nada prático, mesmo com um milhão de providências a tomar em 30 dias. Só consigo pensar nisso: minha menina vai se casar...

E algo dói um pouco e não sei porquê.




segunda-feira, novembro 17, 2003

do final do ano

Quase dezembro: e eis aí o final do ano e o Natal. O ano está quase no fim...

É como se os dias, as semanas, os meses tivessem menos horas do que deveriam ter. E na verdade, são as mesmas 24 de horas de sempre, sete dias por semana...

Por que então essa sensação de que o tempo está passando rápido demais?

A noção de tempo é muito relativa, e para comprovar basta analisar a síndrome do segundo tempo no futebol. Se o seu time está perdendo, o tempo segue rápido demais, insuficiente para uma virada ou uma recuperação. Se o time está ganhando, sempre há o risco do adversário virar o jogo, que daí parece não acaba mais.

Com 50 anos, devo estar jogando lá pelos 15 minutos do segundo tempo. Tem muito jogo pela frente ainda, mas já é segundo tempo, com certeza.

Só que na vida não dá para avaliar assim, de forma simples como quem olha o placar, se estamos ganhando ou perdendo. Porque a qualquer momento podem ocorrer reviravoltas que modificam completamente essa equação.

E, embora a analogia com uma partida de futebol tenha relativa adequação, a vida engendra teias complexas de sentimentos, valores, emoções, fraquezas, ligações que tornam quase impossível uma avaliação no meio do caminho.

Podemos no máximo nos perguntar se estamos gostando do jogo ou se está na hora de fazer mudanças mais significativas.

E não há época mais propícia para nos fazermos essas perguntas do que no final do ano. A proximidade do novo calendário acelera esse questionamento. É como se a perspectiva de um novo ano incluísse possibilidades de mudanças menos disponíveis em outras épocas.

Mas talvez o grande mérito do final do ano seja mesmo o de nos levar a olhar para trás e a desejar novas perspectivas para o que vem pela frente.

E daí alinhamos um monte de boas intenções para o ano que vem. A maior parte fica esquecida logo a partir de janeiro. Poucas vão se tornar ações. Mas, felizmente, sempre nos damos mais uma chance e alinhamos novos e bons propósitos, ainda que só no final do ano...




domingo, novembro 09, 2003

Objeto de desejo

Os cheiros sempre foram um componente importante na minha percepção do mundo. Cheiros de toda sorte e natureza, desde os adoráveis aos que te afastam de imediato.

Entre os mais alvissareiros está o delicioso cheiro de terra molhada no inicio da estação das chuvas, quando os primeiros pingos caem sobre os telhados empoeirados e a terra carente exala um odor de renovação, de vida...

Mas essa semana foi uma imagem que me trouxe á memória um cheiro inesquecível. A foto do vidro de perfume "Toque de Amor" da Avon. O vidro é ainda o mesmo de trinta e seis anos atrás, quando o vi pela primeira vez no quarto da irmã mais velha de uma amiga.

Numa quente tarde de sábado, entrei por poucos minutos no quarto da moça. Ela tinha uma penteadeira, com vários objetos de toucador, incluindo uma bombinha para borrifar perfume, lindissima, com uma cordinha púrpura na ponta.

E entre seus tesouros havia um vidro de perfume "Toque de Amor" da Avon.

Nos meus catorze anos ainda não tinha visto um perfume de verdade. Minha mãe, em suas reduzidas posses, usava Água de Colônia e já era um luxo para a época.

A partir dessa tarde o vidrinho passou a povoar minha imaginação e a se transformar em objeto de forte desejo.

Meses depois, eu me preparava para a esperadíssima festa de formatura do ginásio. Iria usar um vestido novo, amarelinho, com pequenas tranças de tecido realçando o decote, uma obra de arte costurada por minha mãe. Mas certamente minha noite de princesa seria incompleta sem uma nuance do tal "Toque de Amor", garantia absoluta de uma noite memorável.

Fui falar com a proprietária do perfume, e expus a importância de uma leve borrifada do líquido precioso. O argumento dela foi contundente: se ela cedesse para mim teria que garantir uma soprada também para suas irmãs, que até então não tinham merecido tamanha distinção.

Jurei segredo absoluto sobre a fonte da concessão, sem sucesso. Até que ela, pensando melhor, viu em mim uma possibilidade interessante.

E propôs ceder não apenas um, mas três generosos borrifos, em troca de um serviço muito especial: levar uma carta para uma pessoa.

Fácil demais pensei, e me comprometi com a tarefa.

Á noite ganhei minhas três borrifadas e fui gloriosa para a festa de formatura. No salão de festas de um ginásio de interior, piso vermelho de cimento queimado, a música era garantida por um conjunto da própria cidade que, apesar de estreante, arrasou com as imitações de "Renato e seus Blue Caps" e do Jerry Adriani.

Foi a minha primeira festa dançante e uma noite inesquecível.

Na semana seguinte fui pagar minha dívida: levar a carta.

O destinatário era o subgerente do único banco da cidade, bonitão, casado, três filhos.

Dois meses depois, o caso dos dois se tornou público. A esposa traída fez todo alarde possível. Como convinha aos costumes da época, minha patrocinadora, aos 19 anos, foi expulsa de casa. Sem ter parentes que a acolhessem, foi embora da cidade. O moço também foi transferido sabe Deus para onde.

Nunca mais tive noticias dela ou dele...

Também nunca mais usei o tal perfume.


segunda-feira, novembro 03, 2003

Manon des Sources

Aos poucos a pequena gatinha Manon está entrando na nossa vida, com sua alegria infantil. Nos seus quase dois meses de vida tem a alegria e a despreocupação de todos os filhotinhos. Dentro de dez meses será adulta e se tornará circunspecta e observadora, quieta e orgulhosa como a maioria dos animais de sua raça.

Perguntaram-me recentemente a origem do nome Manon. É um nome forte, cheio de significados.

A primeira vez que ouvi esse nome foi no livro "Manon Lescaut" escrito pelo Abade Prévost. Muito depois, o livro inspirou a terceira ópera de Giacomo Puccini, que conservou o mesmo nome do romance e que, pelo seu teor romanesco, fez grande sucesso.

Mas nos romances de Marcel Pagnol que o nome me marcou. Pagnol compôs seu romance em duas partes: Jean de Florette e Manon des Sources, ambos transformados em filmes.

Também no cinema Jean de Florette é a primeira parte de uma história que se passa na zona rural francesa nos anos 20. A parte dois é Manon des Sources, quando a garotinha já é uma moça, vivida pela belíssima Emmanuelle Béart. Em Jean de Florette, Gerárd Depardieu e Yves Montand arrasam com suas interpretações inesquecíveis.

O filme é uma lição sobre a ganância, a natureza humana e como coisas ruins acontecem com pessoas boas. Jean de Florette é um homem urbano, cheio de idéias como cultivar seu terreno e criar coelhos. Sua paixão pela vida transparece na brilhante atuação de Depardieu, que nos emociona ao vê-lo sofrer para conseguir realizar seus sonhos. E Manon é a filhinha que acompanha o sofrimento do pai e que mais tarde vai se vingar duramente.

Compramos os dois volumes dos livros no BHV em 94. Tradicionalmente sempre contei estórias para minhas filhas, todas as noites, a maioria delas criadas na hora H e em geral com vários capítulos que estendiam os percalços dos personagens por semanas. Com o tempo e a idade das meninas, as estórias começaram a se basear em romances. Foi assim que a estória de Manon chegou a nossa casa, em capítulos diários, lidos na véspera e recontados no dia seguinte.

Estávamos em férias escolares e a ansiedade das meninas pela estória foi memorável, talvez mais intensa do que com as outras. As desventuras de Jean de Florette e mais á frente de Manon, povoaram nossa imaginação por muito tempo.

Em 97 fomos ao Luberon, onde Pagnol ambientou seu romance cheio de referências ao clima e à vegetação da região. Eu queria imensamente ver os campos da região de Provence, as plantações de lavanda e as encostas cheias de pedregulhos e oliveiras.

A região do Luberon é um pedacinho no coração da Provence que tem uma característica muito própria, mas que de alguma forma dialoga com a região do cerrado no Brasil. Lá como cá são abundantes as ervas e os cheiros. Também é comum a cor palha da vegetação que conhecemos tão bem por aqui no final da temporada da seca. E Pagnol nos envolve nesse sentimento de sequidão da terra e da alma, na pequenez de alguns seres humanos e, principalmente, nas possibilidades de alegria às quais renunciamos sem sequer reconhecer sua existência.



Cartaz do filme Manon des Sources



Imagens da Provence

quarta-feira, outubro 29, 2003

do Adeus dos Outros

Me impressionou profundamente o título do último post do Milton: "o adeus dos outros".

O post aborda o tema "blogar or not" mas pende para um outro assunto de forte relevância, muitissimo humano e presente nas nossas vidas: persistir ou desistir.

Há muitos anos atrás li a frase: " A escolha traz em si uma perda" e pela primeira vez fui levada a pensar no "preço" de algumas escolhas que fazemos. Quando oscilamos entre desistir ou persistir não estamos fazendo mais que avaliar que preço estamos dispostos a pagar pela escolha de levar adiante um sonho, um afeto, um projeto, quando já não parece tão leve o fardo.

Se estivesse leve não havia porque se questionar. Raramente questionamos a leveza, o prazer, o afeto, a comunhão. Estas são fontes nas quais bebemos sempre com avidez.

Questionamos o prazer dificil, o afeto raro, o sonho adiado, o projeto sacrificante, a aridez, a carência, a não sintonia.

E o que é "o adeus dos outros", senão uma prévia dolorida do nosso adeus, e uma forma terceirizada de reavaliar as escolhas que fazemos, e reiterá-las ou não.

Ás vezes devemos perseverar, e de alguma forma encontrar forças para manter afetos, sonhos e projetos.

Ás vezes devemos dizer adeus, ainda que olhando para trás...

E o meu mais novo aprendizado, fruto de algumas perdas de dificil reparação, me ensinou que existe ainda uma terceira alternativa: a de voltar atrás em algumas escolhas feitas, e, se a vontade for suficiente, ter coragem para retomar, reatar, reiniciar, reviver...





quinta-feira, outubro 23, 2003

Feriadão em Caldas Novas

Goiânia faz 70 anos amanhã, dia 24 de outubro.
Essa linda jovem senhora me traz de presente um feriado na sexta feira, coisa rara este ano, e assim posso ir para Caldas sem um pingo de culpa. E já no final da tarde, alí pelas sete horas, estaremos com agua quente até o pescoço e com champagne gelada no copo. É ruim?

Os blogs estarão recebendo novos e inspirados posts, redigidos deste lugar adorável, uma espécie de preview do paraíso, se a taxa etílica permitir...

E como dizia minha filha mais nova na decolagem do avião: Lá vamos nós !!!!



quarta-feira, outubro 22, 2003

Antiguidade

Cora Coralina


Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus !...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas !

(...)

Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim -
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.



Cora Coralina é a grande poetisa do Estado de Goiás. Em 1903 já escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado, juntamente com duas amigas, em 1908, o jornal de poemas femininos "A Rosa". Em 1910, seu primeiro conto, "Tragédia na Roça", é publicado já com o pseudônimo de Cora Coralina. Seu marido a proíbe de integrar-se à Semana de Arte Moderna, a convite de Monteiro Lobato, em 1922. Em 1965, lança seu primeiro livro, "O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais". Em 1976, é lançado "Meu Livro de Cordel". Em 1980, Carlos Drummond de Andrade, como era de seu feitio, após ler alguns escritos da autora, manda-lhe uma carta elogiando seu trabalho. Em 1983, seu novo livro "Vintém de Cobre - Meias Confissões de Aninha", é muito bem recebido pela crítica e pelos amantes da poesia. Em 1984, torna-se a primeira mulher a receber o Prêmio Juca Pato, como intelectual do ano de 1983. "Estórias da Casa Velha da Ponte" é lançado pela Global Editora. Postumamente, foram lançados os livros infantis "Os Meninos Verdes", em 1986, e "A Moeda de Ouro que um Pato Comeu", em 1997, e "O Tesouro da Casa Velha da Ponte", em 1989. Morre em 1985 com 96 anos. Sua casa faz parte do conjunto arquitetônico tombado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade.



A casa da Ponte, em Goiás Velho, onde Cora Coralina viveu a maior parte de sua vida.



terça-feira, outubro 21, 2003

Breve resposta para Milton

Não, não verás aqui blogs literários.

Aqui, os temas são os amores, os sabores e a falta deles, estes sim, ingredientes e motivo de boa literatura.

Se o mundo está dividido entre os que escrevem e os que lêem, pertenço ao último grupo. Crítica literária é especialidade do Zadig, consumidor ávido e poeta de primeira linha.

Conheço mais da alquimia do fogo, que tranforma carne em prazer, que produz cheiros que devassam a alma em busca de lembranças perdidas, que revela texturas inacreditáveis que nos fazem fechar os olhos e respirar fundo.



E quando quieta e pensativa, as imagens dos livros e filmes me vêem como um recurso para compreender a vida e as pessoas, traçar paralelos entre a ficção e o cotidiano que me cerca, uma espécie de ilustração privativa, só minha, no máximo compartilhadas com os amigos dos blogs.



E que delicia de diálogo virtual, onde cada insight se completa no desejado comentário do amigo, cada um merecedor do melhor da sua atenção...

Não, não espere de mim blogs sobre literatura, e sim reflexões sobre a vida e as pessoas. Mas espere sim que eu aguarde ansiosa as publicações dos amigos, incluindo os blogs literários, lidos com enorme prazer nas pequenas janelas de tempo livre que a profissão impõe, o seu entre os mais desejados.

sábado, outubro 18, 2003

Balzac e Manon




Balzac entrou na nossa vida por acidente.

Há seis anos atrás Princesa, a gata da casa, morreu afogada na piscina, pois um acidente a deixara cega emeio incapacitada. Era uma persinha puro sangue, de um cinza azulado, oficialmente tida como de cor fumaça, olhos cor de cobre e de uma beleza rara. Tinha a personalidade de acordo com seu nome. Era mesmo uma Princesa, no porte, na postura e na preguiça, como quem sabia que a comida apareceria em seu prato a tempo e hora.

Cecilia, à época com 12 anos, abriu a janela no domingo de manhã e viu boiando um objeto peludo. Pressentindo o desastre, saiu correndo e gritando. Tarde demais.

Aquele domingo transcorreu com olhos vermelhos e fungados de toda a família. Ainda por cima o Beto ia para Manuas a trabalho naquela noite, ficando fora toda a semana.

Na segunda feira, as lágrimas de Cecília e Maíra se juntaram aos suspiros da Sônia, nossa secretária há mais de dez anos.

Para acelerar a mudança de astral pensei num plano simples: comprar um outro filhotinho. No horário de almoço vasculhei o jornal de cabo a rabo e nada de filhotes de gato. Várias ligações para lojas especializadas sem sucesso. Duas horas depois e já sem esperanças concluí que pouca gente compra e vende gatos, só há disponibilidade de filhotes de cachorro, pelo menos em Goiânia. De repente me passou uma idéia louca pela cabeça: e se fosse um cachorrinho? Desde que fosse educado e bem comportado, seria uma experência nova e interessante numa casa que, até então, só abrigara felinos.

O veterinário, nosso amigo que ajudara a salvar a vida de Princesa quando do acidente que a deixou cega, recomendou procurar um filhote da raça Collie.

Foi assim que ele chegou em casa: fofinho, moleque, alegre, um encanto. O nome foi escolhido rapidamente: Balzac. Nome curto, fácil de pronunciar e representativo para toda a família. Em pouco tempo se tornou o filho mais novo e o centro das atenções de todos na casa. Educadíssimo e obediente, nunca deu trabalho. Respeita os limites estabelecidos apesar da carência ancestral. Se humilha sem nenhum pudor se for por um agrado ou afago. Tosse como um condenado com a fumaça de charuto que, ocasionalmente, é obrigado a suportar para ficar ao lado do dono.

E agora, também por acidente, Manon vai entrar na família. Vira lata de raça pura, preta e branca, tem os olhos mais doces que uma gatinha pode ter. Sem lenço e sem documento, é filha de uma gata de rua, mendiga. Não tem mais que um mês de vida, e terá que se defender de eventuais ataques de ciúme do Balzac, não muito amigo de felinos, pássaros e aviões, que ele crê que tem obrigação de afugentar com latidos fortes e ameaçadores.

quarta-feira, outubro 15, 2003

dos Prazeres da Mesa

Chego de São Paulo com uma séria avaria na coluna, prêmio por carregar o lap-top toda a tarde, incluindo três horas de aeroporto em virtude dos tradicionais atrasos dos vôos do final do dia.

Dificil sentar e levantar. Ou fico só sentada, ou só em pé. A massoterapeuta recomendou cama. A dor incomoda, mas não chega a impedir os movimentos. A pilha de compromissos assumidos me manda ir para empresa.

Entre uma escolha e outra, vence a empresa, até porque nessas circunstâncias não há nenhum possibilidade de prazer na cama, mas dá pensar seriamente no prazer da mesa. Encomendo um pré-preparo de um pequeno pedaço de bacalhau a ser feito desfiado com cebolas, batatas, azeitonas, ervas e carinho.

A noite, reservo meia hora para preparar um arroz branco, soltinho, com leve nuance de alho. A família de meu pai, de origem italiana, acreditava que não saber cozinhar era motivo suficiente para deserdar uma filha.

Do lado da minha mãe, a preparação de arroz branco e soltinho sempre foi ponto de honra. A lei da casa é que arroz que se preze pode ser apreciado puro, sem nenhum complemento.

O teste das canditadas a esposas de meus seis irmãos era fazer um arroz a ser apreciado pela dona Carmem, minha mãe, pessoa de grande coração e pronta para o perdão, exceto em questões culinárias.

Cercada à direita e à esquerda, entrei nos anos 70 apta a pilotar um fogão, na completa contramão dos tempos. Nem mesmo a tendência liberalizante da outra colega na engenharia elétrica, éramos duas garotas entre 114 rapazes, conseguiu minimizar o efeito de anos de influência familiar.

Foi com todo o rigor exigido pelo prato que preparei o tal arroz branco, soltinho e fumegante, orgulho de família, enquanto meu companheiro servia poemas de Augusto Meyer e concerto de Tchaikóviski.

Servidos o arroz e o bacalhau, devidamente escoltados por um vinho decente e acessível, fiquei pensando em como os prazeres da mesa são relevantes.

Na escala de importância da maioria dos mortais, estão os prazeres da cama, seguidos de perto pelas delícias da mesa.

E quem melhor que Eça de Queiroz, que faço questão de transcrever, para retratar esse prazer excepcional?

“Em palácio algum, por essa Europa superfina, se come na verdade tão deliciosamente, como nas rústicas quintas de Portugal. Na cozinha enfumarada, com duas panelas de barro e quatro achas a arder no chão, estas caseiras de aldeia, de mangas arregaçadas, guisam um banquete que faria exultar o velho Júpiter, esse transcendente guloso, educado a nectar, o Deus que mais comeu e mais nobremente soube comer, desde que há Deuses no Céu e na Terra.

Quem nunca provou este arroz de caçoula, este anho pascal assado no espeto, estas cabidelas de frango coevas da Monarquia, que enchem a alma, não pode realmente conhecer o que seja a especial bem-aventurança, tão grosseira e tão divina, que no tempo dos frades se chamava a comezaina (...) E a quinta depois... oferece, mais que nenhum outro paraíso humano ou bíblico, o repouso acertado para quem emerge, pesado e risonho, deste arroz e deste anho”


domingo, outubro 12, 2003

Do final de domingo

Quase dezoito horas de domingo. O final de semana perfeito, exceto pelos garantidos kilos a mais, começa a se despedir em raios de sol amarelados, que entram sem convicção pela janela, junto com um bando de muriçocas.

O locutor da Nostalgie anuncia a musica " Fio Maravilha" cantado em francês pela Nicoletta e garante aquele tom de voz meio final de domingo, até porque para ele já são onze horas da noite.

Penso nesse sentimento universal que nos acomete no final do domingo, no final do verão, no final da festa, no final das férias.

Acho que está ligado principalmente ao sentimento de "final". Aquele esvaziamento emocional antes de começar de novo. Sim, porque amanhã tudo recomeça, tão certo como o sol se porá daqui a pouco e reaparecerá amanhã cedinho.

Também me vem á cabeça uma frase do Luiz Fernando Veríssimo que adoro: "Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo."

Poderia acrescentar: para os finais de domingo, coragem...




quarta-feira, outubro 08, 2003

da Música Francesa

Cecília, meu bebê de 18 anos, que é também estudante de Engenharia na USP/São Carlos, esteve por aqui este final de semana e comentou sobre a beleza absoluta da música "Rive Gauche" de Alain Souchon.

E arrematou, perguntando porque não se acha discos do Souchon.

Pobre música francesa condenada ao mais absoluto ostracismo no Brasil depois do apartheid fonográfico, que definiu as regiões de domínio das grandes gravadoras.

No loteamento global, o Brasil ficou sob os auspícios da produção americana, com tudo o que isso tem de bom e de ruim. O lado bom é que qualquer loja de discos de bairro tem três ou quatro discos de John Pizzarelli, de Ella Fitzgerald e de Nina Simone.

No entanto, gerações inteiras desconhecem a existência de Francis Cabrel, Maxime Le Forestier, J. J. Goldman, Gerard Manset, Julien Clerc, Alain Souchon...

O contrário não é verdadeiro. Os franceses conhecem e adoram a música do mundo, com especial amor pela nossa. João Bosco, Chico Buarque, Djavan, Milton Nascimento são muito conhecidos por lá.

Experimente uma pesquisa no Google com respostas em francês para "Chico Buarque". São 1330 referencias. A mesma pesquisa em sites do Brasil para "Alain Souchon" traz 47 entradas, a maioria tendo como referências a embaixada francesa ou a Aliança Francesa.

Estava em um show do François Feldman no Casino de Paris, e fiquei pasma ao reconhecer a cantora que se apresentava num excepcional solo: Evinha, sim aquela linda voz do Trio Esperança de "Casaco Marrom" e "Cantiga por Luciana".

Nada a fazer contra o apartheid cultural, a não ser ouvir a Radio Nostalgie pela Internet e curtir com enorme prazer a voz de Francoise Hardy ou de Nicolas Peyrac.


terça-feira, outubro 07, 2003

da Ausência



Procurei o Aurélio na estante para indagar o exato sentido da palavra "Ausência", sem sucesso. Certamente ele está perdido entre os três mil livros que povoam essa biblioteca caótica, mantida sob um clima de desordem organizada por seu proprietário majoritário (e que não sou eu).

Minha ausência do blog: devo ter me sentado vinte vezes na frente do teclado, e preferido ler os blogs dos amigos, abrir o joguinho de cartas Spider e ouvir a radio nostalgie pela Internet. Essa é minha melhor receita de esvaziar a cabeça em dias atordoados.

Outro dia li de uma atriz famosa que ela se distrai das querelas do cotidiano lavando roupa no tanque. Cada um tem a sua receita para afastar as neuras.

Um tanque de roupas é demais, mesmo para mim, geração anos 70.

Prefiro ler os blogs dos amigos, onde aprendo a conhecer um pouco melhor a sensibilidade do Guiu, a emotividade do Milton, a erudição do Zadig, o humor do César, a simpatia do Marcos do Meia Pataca e por último o charmoso blog do meu queridissimo amigo Chico Sena, melhor anfitrião que conheci nos últimos anos.

De acordo com o Zadig, escrever para o blog é sentar e escrever e ponto. Deve ser assim mesmo para algumas pessoas. Nada de tecer teses de alta profundidade duas vezes por mês.

Acho que ele tem razão.

Assim, na ausência do dicionário, vamos simplificar e ir pela minha própria percepção da palavra Ausência: oposto de presença, sentimento de vazio, de incompletude. E por consequência da palavra Presença: sentimento de proximidade, de existência.

Ave César.

quarta-feira, setembro 17, 2003

DESEJO

Carlos Drumond de Andrade

Desejo a você,
fruto do mato,
cheiro de jardim,
namoro no portão,
domingo sem chuva,
segunda sem mau humor,
sábado com seu amor,
filme do Carlitos,
chope com amigos,
crônica de Rubem Braga,
viver sem inimigos,
filme antigo na TV,
ter uma pessoa especial,
e que ela goste de você,
musica de Tom com letra de Chico,
frango caipira em pensão do interior,
ouvir uma palavra amável,
ter uma surpresa agradável,
ver a banda passar,
noite de lua cheia,
rever uma velha amizade,
ter fé em Deus,
não ter que ouvir a palavra "não",
nem nunca, nem jamais adeus.
Rir como criança,
ouvir canto de passarinho,
sarar de resfriado,
escrever um poema de amor que nunca será rasgado,
formar um par ideal,
tomar banho de cachoeira,
pegar um bronzeado legal,
aprender uma nova canção,
esperar alguém na estação,
queijo com goiabada,
pôr-do-sol na roça,
uma festa,
um violão,
uma seresta,
recordar um amor antigo,
ter um ombro sempre amigo,
bater palmas de alegria,
uma tarde amena,
calçar um velho chinelo,
sentar numa velha poltrona,
ouvir a chuva no telhado,
vinho branco,
bolero de Ravel...
e muito carinho meu!



A partir de uma sugestão do Marcos, do blog Meia Pataca, que me disse que este poema do Drummond tem algo a ver com o post "De Cheiros e Lembranças"
  • Meia Pataca

  • segunda-feira, setembro 15, 2003

    De cheiros e lembranças

    Domingo de manhã, saí muito cedo para comprar frutas frescas e pão para o café da manhã. Era domingo de Fórmula Um e prometia ser uma corrida emocionante...

    Adoro os cheiros da padaria. Pão quentinho recém assado, pão de queijo, laranja fresca, sanduiches e café... Aquela hora da manhã esses cheiros são capazes de despertar os sentidos de um monge.

    Na frutaria esbarrei numa montanha de pêssegos organizados sobre uma banca, e isso fez cair umas três frutas. Meio sem jeito, apanhei os pêssegos no chão e os devolvi para a pilha bem organizada.

    Foram poucos segundos, mas foi o suficiente para sentir o cheiro forte dos pêssegos, e em segundos eu estava em Porto Alegre, final de ano, calor, e os pêssegos povoando de cheiros a Praça da Alfândega e a descida da Borges de Medeiros.

    Dezembro era mês de férias, e de Natal.

    Ás vezes sinto saudades de Porto Alegre...

    Não foi um período fácil da minha vida, estudando todo o dia na Escola de Engenharia e á noite fazendo um serviço imbecil: somar cheques das 8 da noite ás quatro, cinco, até seis da manhã. Saia do trabalho, lavava o rosto com água fria e ia enfrentar as aulas de Cálculo ou Eletrônica.

    No final do semestre o esforço era tamanho, que a imagem que me vinha à cabeça sobre minha luta era a do salmão enfrentando cachoeiras na contra corrente. Mais de vinte anos se passaram, mas as sensações parecem de ontem...

    Ainda com o cheiro de pêssego na mão eu dirigia de volta à casa, mas sem deixar de pensar no poder que alguns cheiros e sabores têm sobre nós.

    Impossivel não lembrar do fantástico romance "No Caminho de Swann", de Marcel Proust. A obra traz uma das mais famosas passagens da literatura, quando o narrador come uma "madeleine" molhada no chá e vê sua consciência mergulhar involuntariamente no passado.



    Ao sentir o sabor do bolo embebido no chá, ele é transportado para o passado, pois aquele era exatamente o mesmo gosto do pedaço de madeleine que a enferma tia Leonie lhe oferecia quando criança, na casa de Combray, cidade em que costumava passar as férias com os pais. Ao reconhecer o gosto da madeleine, toda Combray e seus arredores tomam forma e saem da taça de chá para o presente, vindo à tona junto com seus “eus” anteriores e todas as suas lembranças.

    A partir de Proust penso na própria cidade de Combray, onde chegamos de carro, vindos da Normandia, e conseguimos já no final da tarde uma visita sem guia ao museu de Proust, incluindo um jardim sombreado, onde uma florzinha tinho cheiro de dama da noite, forte o suficiente para enjoar meu estômago...

    Ainda a caminho de casa penso em tantos cheiros e sabores de nossa vida, vinculados a imagens do passado, sensações vivas, cheiros que são pura lembrança e emoção.

    E penso como é forte a associação entre bons momentos e os sabores e cheiros que os marcaram...



    Museu Marcel Proust em Illiers-Combray

    domingo, setembro 07, 2003

    Dos desencontros

    Cada encontro está carregado de perda. Ou de perdas. Ou é invadido por uma inexplicável melancolia. O encontro humano é tão raro que mesmo quando ocorre, vem carregado de todas as experiências de desencontros anteriores. Cada desencontro é perda porque é o oposto do que teria sido uma possibilidade de afeto.

    É a experiência de desencontros que ensina o valor dos raros encontros que a vida permite.

    Mas por isso ou por aquilo, cada encontro está carregado de perda. E no ato de sentir-se feliz associa-se a idéia do passageiro que é tudo, do amanhã cheio de interrogações, da exceção que aquilo significa. A partir daí, uma tristeza muito particular se instala.

    Há sempre uma despedida em cada alegria. Há sempre um E depois? após cada felicidade. Há sempre uma saudade na hora de cada encontro. Antecipada."

    Que intenso é o efeito que a coleção de encontros e desencontros que acumulamos na vida tem sobre a nossa personalidade, a forma como nos relacionamos com as pessoas e como interpretamos as diversas atitudes das pessoas importantes para nós.

    Durante a vida, enquanto adquirimos maturidade, bens, conhecimentos, títulos, peso, cabelos brancos, também armazenamos perdas. Perdemos pessoas importantes, algumas pela inevitabilidade da morte, outras porque simplesmente abandonamos ou nos abandonaram. Aos poucos vamos nos distanciando da imagem da juventude, cada vez mais idealizada e distante do que nos mostra o espelho.

    Desistimos de sonhos e crenças, soterramos a maior parte das nossas expectativas de carinho sob muita praticidade e um jeito mais moderno de ser; aprendemos a censurar a gargalhada espontânea, a nossa ingenuidade e pureza, a resposta rápida e sincera, a pergunta pessoal e como conseqüência perdemos a naturalidade.

    Obrigados a criar defesas, procuramos esconder a fragilidade da criança sob a aparência do adulto e nos tornarmos sérios, práticos, professorais, ajuizados e, finalmente conseguimos perder a nós mesmos.

    Somente em raros momentos de descontração, em situações que consideramos seguras, conseguimos ser livres e passar por cima da autocensura. Por instantes, somos autênticos. É que não é fácil correr o risco de ter nossas palavras mal interpretadas, acostumados a expor nossas forças e a esconder nossas fraquezas.




    Reflexões a partir de texto de Arthur da Távola e SLT

    terça-feira, setembro 02, 2003

    Das cores

    "cores do meu mundo...
    ...cores da minha vida!"



    Como não tinha percebido antes?

    Há uma cor para cada fase da vida, para as faces do mundo interior, e para a natureza.

    No inicio da vida adulta a descoberta do lilás: mistura equilibrada de rosa e azul claro, a combinação perfeita para definir o encontro do masculino e femino. Lilás nas cortinas e na cama. E a profunda busca de encontrar a alma irmã, o lado azul claro que me faltava...

    Os tons das folhas dos plátanos em todas as suas variações sempre definiram o estado de espírito da estação. Nas ruas de Porto Alegre, as folhas no chão indicavam que o semestre estava próximo de terminar, e com ele as temíveis provas da Escola de Engenharia.

    Na época, os irmãos Kleiton e Kledir, começavam a estrear seus primeiros passos na música, e Kleiton, meu colega de sala na Escola de Engenharia da UFGRS, chegava de olhos vermelhos, com cara de quem dormiu pouco. Tinhamos isso em comum: ele passava as noites em sonhos de música, e eu somava cheques numa fria sala da CEF.

    O resultado era o mesmo: ambos bocejando e com os olhos vermelhos, tentanto compreender as demonstrações de teoremas impostas pelo Cálculo III, que aos poucos ficavam distantes, remotas, impalpáveis... E a voz do professor ia tomando entonações suaves, melodiosas e que embalavam um cochilo duramente reprimido quando percebido. E tudo era meio pálido, em tons pasteis, de olhos com dificuldade para fazer a diferença entre as cores.

    O branco e preto, numa fase já mais recente, minimalista, de quem já sabe o que quer e não precisa se perder nos detalhes...

    Os tons de terra, como simbolo do aconchego, do carinho, do desejo de dividir. O amarelo do ipê, alegria isolada no mês de agosto.

    Cores do meu mundo... Cores da minha vida...



    Kleiton e Kledir
    ..............................................................................................................................

    Trem das Cores
    Caetano Veloso

    A franja da encosta, cor de laranja
    Capim rosa chá

    O mel desses olhos luz
    Mel de cor ímpar

    O ouro ainda não bem verde da serra
    A prata do trem
    A lua e a estrela
    Anel de turquesa

    Os átomos todos dançam
    Madruga, reluz neblina

    Crianças cor de romã entram no vaguão

    O oliva da nuvem chumbo ficando pra trás da manhã
    E a seda azul do papel que envolve a maçã

    As casas tão verde e rosa
    Que vão passando ao nos ver passar
    Os dois lados da janela

    E aquela num tom de azul quase inexistente
    Azul que não há
    Azul que é pura memória de algum lugar

    Teu cabelo preto, explícito objeto
    Castanhos lábios
    Ou pra ser exato lábios cor de açaí

    E assim trem das cores
    Sábios projetos tocar na central
    E o céu de um azul celeste, celestial


    domingo, agosto 24, 2003

    De recomeços

    Para Guilherme Lamenha

    Concordo: ninguém nos avisou que seria assim. Não fomos nem prevenidos nem preparados. Nas estórias, (assim mesmo, sem agá, porque as com agá não são inventadas) que nos contaram tempos atrás, cresceríamos e teríamos uma profissão, e encontraríamos alguém que nos amasse profundamente e a quem amaríamos profundamente e com quem viveríamos felizes para sempre. Não foi por maldade, foi por perdão. Ou por desconhecimento de causa, sempre me ocorre que eles (esses que nos contaram as estórias sem agá) não podiam supor que os tempos escurecessem como escureceram...

    Estamos exaustos de amor não dado nem recebido. Aos poucos vamos percebendo que não há sentido nisso, nem em não dá-lo nem em não recebê-lo. E que mergulhamos num mar tão rígido de impossibilidades, e que nos impusemos tantas proibições que as persianas discretamente abaixadas para o olhar dos outros lentamente se transformaram em grades...

    O que estou tentando te dizer companheiro, é que reinaugurei a minha vida ontem...

    Eu sei, eu sei... também me disse que assim como ontem voltei a abrir janelas, amanhã talvez volte a fechá-las.

    Não estou nem punk, nem odara, companheiro. Estou vivo. E descobri isso ontem porque algumas das pessoas que eu mais amava me foram roubadas pela morte, ou pelas viagens ou por outras formas impublicáveis. E se morri um pouco em cada uma dessas perdas, sai muito mais vivo.



    Trecho da crônica "Qualquer coisa como uma carta" de Caio Fernando Abreu - publicada na Folha da Manhã dez/77

    sábado, agosto 16, 2003

    Da solidão

    Nesta cidade do Rio
    De dois milhões de habitantes
    Estou sozinho no quarto
    Estou sozinho na América.
    ...
    De dois milhões de habitantes!
    E nem precisava tanto...
    Precisava de um amigo,
    Desses calados, distantes,
    Que lêem verso de Horácio
    Mas secretamente influem
    Na vida, no amor, na carne.
    Estou só, não tenho amigo,
    E a essa hora tardia
    Como procurar amigo?
    A BRUXA de Carlos Drummond de Andrade

    Se eu amo o meu semelhante?
    Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?
    EXAME DE CONSCIÊNCIA de Mário Quintana


    Este poemas te dizem algo?

    A pergunta de Drummond e Quintana é a mesma: Como procurar amigo? Onde encontrar meu semelhante?

    O tema é comum e angustia populações independente de idade, estado civil e classe social. E a solidão do ser humano nesses tempos tão urbanos se apresenta na sua pior forma: a solidão acompanhada, aquela da qual fala Drummond, ou a solidão interior, que se acentua na medida da consciência de que as pessoas á sua volta não são próximas o suficiente.

    Esse sentimento é fruto da ausência de comunicação, de interação, de troca e cava túneis na alma. É o fermento que faz crescer o sentimento de abandono, de desistência, de absoluta carência. O lado bom é que pode ser varrido em segundos por um sorriso, uma palavra, um carinho. E o túnel se transforma em ponte.


    quarta-feira, agosto 13, 2003

    Das impressões

    Monet soube como ninguém perseguir a luz e seus efeitos mágicos e fugazes. Assim, os mesmos lugares se transformam sob o efeito do excesso ou mudança da luminosidade. Ironicamente, a catarata fez sua visão ir diminuindo até quase não enxergar mais. Somente três anos antes de sua morte uma cirurgia o ajudou a ver com clareza as nuances de luz e cores que são sua assinatura.



    terça-feira, agosto 12, 2003

    De Casablanca

    São 60 anos desde que o filme teve sua estréia, com estrondoso sucesso.

    É mesmo um clássico, na exata definição do que deve ser filme clássico, ainda que sem 100% de consenso.

    Outro dia assisti a uma discussão onde se dizia que a aura que se criou em torno do filme era indevida. Talvez seja verdade. Até porque quem argumentava era um jovem com pouco mais de 20 anos, e tendo assistido ao filme recentemente, ele argumentava não ver no filme razão para tanto auê. É um bom filme, dizia, nada mais que isso.

    Como argumentar contra uma visão de quem nasceu depois do video cassete? Nós, a população que nasceu antes da invenção desse precursor do DVD, tínhamos que se nos contentar com exibições especiais, em geral em festivais de filmes ou cineclubes, de seleto público universitário, que depois do cinema se reunia para verdadeiras rodadas de discussão sobre o trabalho do diretor e a sua inspiração não explicíta ou algo que o valha...




    Á época, os diretores franceses Godard, Malle e Truffaut davam as cartas seguidos de perto por Fellini e Bergman.

    Ai de quem não tivesse visto e gostado de Amarcord, La nave va, La dolce vita, L´Argent de Poche, Sonata de Outono, para ficar por aí.

    Eu mesma não gostei de Morangos Silvestres, e me atrevi a dizer isso. Escapei da patrulha ideológica e do linchamento cultural graças ao namorado que explicou que era só uma força de expressão, que eu gostara sim...




    Mas como poderia eu, recém aprovada no vestibular, e mergulhada nas agruras do Cálculo I da Engenharia Elétrica, compreender os dramas existenciais de um velho médico, que faz um balanço de sua vida e o resultado claramente está no vermelho?

    Visto de hoje, "Morangos Silvestres" é uma aula. Mas continua absolutamente hermético para menores de 20 anos.

    E Casablanca? Mesmo tendo visto o filme mais de 35 anos do seu lançamento, só de olhar as fotos ainda tenho arrepios. E você?

    E a cidade de Casablanca, em uma distante África, da qual me recordo principalmente por ter visitado em pleno Ramadã - em que o sacrifício do jejum imposto enquanto o sol estivesse no horizonte e a ausência de mulheres em locais públicos - foram esquecidos ante à emoção de visitar o bar, com quase a mesma aparência da foto original, que você vê abaixo.




    60 anos...

    E hoje, a cidade com seu mar azul e casas brancas (daí o nome) festeja os 60 anos de lançamento do filme que fez a fama de Casablanca e ajudou a movimentar um turismo já intenso.

    domingo, agosto 10, 2003

    De agosto

    Agosto acentua o estado de hibernação da natureza. A cor de palha, o ar de fumaça, a sensação de tudo seco. Apesar de ser inverno o sol não é para marinheiro de primeira viagem.

    A paisagem está em compasso de espera, e dormindo sob a terra, os bulbos aguardam...

    A maior parte da minha vida convivi com essa angustiante espera da chuva que tarda, bem típica da região centro-oeste.

    Não há paralelo possível com a sensação das árvores nuas do Sul, onde convivi com inverno de verdade, frio, cinza e chuvoso.

    Aqui e ali, em atitude afrontosa com a grama seca, uma ou outra árvore exibe sua flores num suave tom lilás. Muitas preservam as folhas e algumas chegam a esnobar um verde tenro, sabe Deus por que meios.



    Mas sobre todas as cores predominam os tons de palha, seco, suave, semi morto.

    E há um peso sobre o ar, sobre as pessoas, como se toda a natureza se ressentisse de sede constante.

    Nas pequenas cidades do interior, redemoinhos de vento levantam uma poeira vermelha, misturada com cinza, que depois vem se espalhar nos balcões onde os mosquitos disputam algumas gotas que cairam dos copos.

    O gato da casa dorme a maior parte do tempo, sem disposição para incomodar seus inimigos. O zumbido de uma mosca mostra que há vida sob essa morte aparente.

    Ainda tardará a primeira chuva, que lava o ar, as folhas das arvores, os tetos das casas, a alma das pessoas. E depois, só bem depois, quase dezembro, vêm as chuvas de verão, fortes, potentes, agressivas.

    Daqui até lá, os dias se arrastam, como se tivessem piedade de si mesmos...


    sábado, agosto 09, 2003

    Dos Sonhos

    Os sonhos na visão de Kurosawa


    As estórias estão muito ligadas aos sonhos.
    Os sonhos são nosso lado livre, onde as barreiras se diluem, e podemos flutuar sobre nossas ansiedades, desejos, angústias, em vôos que misturam imagens empoeiradas de arquivos muito profundos em nossa memória.

    Os melhores sonhos são os sonhos de olhos abertos, quando o teto de repente se transforma em uma tela de projeção. Nessa mesma tela se projetam os piores pesadelos.

    Sonhos e desejos ás vezes se confundem.

    Da identificação

    "No tempo do rei Moabdar havia em Babilônia um jovem chamado Zadig cuja boa índole se aprimorara pela educação. Embora moço e rico, sabia moderar as paixões, não pretendia ter sempre razão, e costumava respeitar a fraqueza dos homens. Aprendera que o amor-próprio é um balão cheio de vento, de onde brotam tempestades quando se lhes dá uma alfinetada. Não se vangloriava. Era generoso. Era o mais sábio possível, pois procurava viver com os sábios. Instruído na ciência dos antigos caldeus, não ignorava os princípios físicos da natureza e, quanto à metafísica, sabia dessa matéria o que sempre se soube em todas as épocas..." (Voltaire)

    Zadig conta estórias como Sherazade, mas suas estórias são diferentes, muito próprias...

    Zadig

    sexta-feira, agosto 08, 2003

    Do início



    As estórias de Scherazade carregam uma aura de mágica e de sedução em um ambiente que inclui o fascinante mundo dos gênios, magos, bruxas e fadas do Oriente. Ela passará a contar para o sultão Shariar, durante "As Mil e Uma Noites", uma estória que jamais termina.
    Essa estória tem a mistura perfeita da quimica humana: sexo, morte, traição, vingança, magia, humor, calor, esperteza, surpresa e final feliz. Sherazade é uma das mais fortes e inteligentes heroínas da literatura mundial , e triunfa sobre a morte porque é criativa.

    " As Mil e Uma Noites" são uma lição sobre contar estórias, sem deixar de ser estórias de amor, de vida, de morte, de dinheiro, de comida e de outras necessidades humanas.

    Contar estórias é tão parte da natureza humana quanto a respiração e a circulação.

    E tem tudo a ver com reflexões sobre a vida e as pessoas.

    Obrigada por compartilhar comigo essa visão.