quinta-feira, dezembro 16, 2004

O ano se vai

O ano se vai...
Em marcha acelerada, as páginas da folhinha dançam ao sabor dos ventos que as levam, sabe Deus para onde... E em sua trajetória os dias tecem uma longa teia de sentimentos, elos, imagens, sensações.
Em sua lida o tempo pulveriza mágoas, constrói lembranças e cicatriza feridas abertas por dias que já se foram...
"De longe todas as serras são azuis" me dizia um querido amigo. De fato, vistas de longe as mazelas do cotidiano são fatos menores.
As lembranças que arquivamos em nosso baú de tesouros vêem de instantâneos capturados ao sabor de nossa disponibilidade emocional de perceber a beleza ou a importância de um momento.
É um fugaz raio de luz em uma face amada, uma palavra doce, a fumaça de um arroz recém preparado, a pergunta inesperada de uma criança, as perdas que enfrentamos, um cheiro que transpira infância, uma florzinha amarela banal ou um trecho de música que nos remete a um passado distante...
E ao olhar para esse ano que enfileira seus últimos recursos penso nas perdas e ganhos, nos momentos dificeis e nas alegrias que não faltaram.
Foi um ano diferente. Por um lado uma perda emocional de dificil superação. Pessoas muito queridas estão distantes. Por outro lado pessoas adoráveis e que fazem a diferença mostram que a vida se recicla como nas estações do ano.
No reveillon, quando o novo ano chegar, reservarei uma taça de champagne a esse ano tão diferente em minha vida. Talvez o ano em que tive mais alegrias em relação a todos os outros. E que também me trouxe dores muito profundas.
Vendo esse 2004 assim, quase terminando, penso em como a vida escorre célere seus minutos mas sabe nos deixar as necessárias lições.
E olhando para 2005 que está a caminho penso que os sonhos são mesmo o melhor combustível de uma vida.

quarta-feira, novembro 17, 2004

Feriado da República

Quase dezoito horas de segunda feira do feriadão.

O feriadão com direito a viagem a Pirenópolis e extravagâncias de sol, comida, vinhos, livros e excelente companhia, só teve de ponto baixo os garantidos e merecidos kilos a mais.

E agora essa janela temporal começa a se despedir em raios de sol amarelados, que entram sem convicção pela porta de vidro, junto com um bando de muriçocas.

O locutor da Nostalgie anuncia a musica " Fio Maravilha" cantado em francês pela Nicoletta e garante aquele tom de voz meio final de domingo. Para ele, transmitindo pela Internet uma excepcional programação da velha e boa música francesa, já são onze horas da noite de uma segunda feira normal de trabalho para os parisienses.

Mas para mim é como se fosse o final de domingo.

Penso nesse sentimento universal que nos acomete no final do domingo, no final do verão, no final da festa, no final das férias.

Acho que está ligado principalmente ao sentimento de "final". É quase um esvaziamento emocional antes de começar de novo. Sim, porque depois do feriado tudo recomeça, tão certo como o sol se porá daqui a pouco e reaparecerá amanhã cedinho.

E então me vem á mente uma frase do Luiz Fernando Veríssimo que adoro:
"Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo."
Gostaria de pedir a ele para acrescentar: " e para os finais de domingo, coragem..."

domingo, outubro 24, 2004

Em 30 anos

Minha geração assistiu a mudanças de métodos e tecnologia que parecem inacreditáveis vistos de hoje.

Numa conversa casual contei para minha filha que estuda Engenharia Eletrônica, que eu usei Régua de Cálculo e Manual do Engenheiro nos dois primeiros anos de Engenharia. Como assim régua de cálculo? Quando expliquei ela teve uma crise riso. Eu justifiquei dizendo que o homem foi a Lua apoiado no trabalho de engenheiros que também usavam régua de cálculo. Ela não conseguia acreditar.



Em 1972 eu trabalhava na Caixa Econômica Federal e meu serviço era ajudar a lançar o movimento diário na ficha dos correntistas.

O lançamento era feito numa máquina Audit da Olivetti, que possuía duas memórias mecânicas e somava as colunas do débito e do crédito separadamente, atualizando os saldos nas fichas dos correntistas com segurança e rapidez.

No final do dia somávamos os cheques, as retiradas e os depósitos em calculadoras também mecânicas para conferir o fechamento do movimento. No final do serviço meu braço doía pois essas máquinas eram todas movidas por pequenas manivelas laterais, mas era um trabalho muito conveniente pois era feito no final do dia e a noite o que me permitia ir para a faculdade na parte da manhã.



Nessa mesma época iniciamos a implantação de um sistema informatizado de processamento da conta corrente. Foram meses e meses para passar as informações das fichas amarelas para o novo sistema. Nessa mesma época eu estudava Fortran na faculdade e estava bastante familiarizada com os segredos dos cartões perfurados e dos relatórios de critica emitidos pelo computador mais moderno da época, o IBM370.

O novo sistema emitia uns papeizinhos que eram chamados de slips e que continham os lançamentos do dia anterior já processados. Como a Agência só recebia uma cópia do relatório, os caixas consultavam os saldos nos slips que ficavam num plástico organizado em ordem alfabética. O problema é que os slips vinham em ordem de conta corrente. Era preciso, todos os dias, colocá-los em ordem alfabética para serem consultados no dia seguinte. Durante o dia todos os lançamentos eram feitos á mão.

Em 1976, já morando em Porto Alegre fui trabalhar na compensação de cheques, onde os cheques em organizados pelo código das agências. Na sala havia grandes escaninhos de madeira com pequenos nichos e rotulados com o código da agência. Nosso trabalho era separar e somar os lotes de cheques em calculadoras elétricas da Burroughs, moderníssimas.



Qualquer problema mais urgente era comunicado às Agências usando outro equipamento também moderníssimo, o telex, uma espécie de telegrafo movido a fita perfurada e que era capaz de transmitir uma mensagem através da Embratel para outros aparelhos de telex em tempo real. O barulhinho do telex me ressoa nos ouvidos ainda hoje, tantas vezes o ouvi.

Parece muito arcaico visto de hoje? Pois isso aconteceu há menos de 30 anos.

Eu mesma as vezes fico surpresa de pensar que nossa geração usou o cartão perfurado e hoje convive com o Palm Top e a Internet.

Muito pouco tempo para uma revolução gigantesca.

terça-feira, outubro 19, 2004

Tempo bom

Quase novembro: e eis aí o final do ano e o Natal.

O ano está quase no fim... É como se os dias, as semanas, os meses tivessem menos horas do que deveriam ter. E na verdade, são as mesmas 24 de horas de sempre, sete dias por semana...

Por que então essa sensação de que o tempo está passando rápido demais? A noção de tempo é muito relativa, e para comprovar basta analisar a síndrome do segundo tempo no futebol. Se o seu time está perdendo, o tempo segue rápido demais, insuficiente para uma virada ou uma recuperação. Se o time está ganhando, sempre há o risco do adversário virar o jogo, que daí parece não acaba mais.

Só que na vida não dá para avaliar assim, de forma simples como quem olha o placar, se estamos ganhando ou perdendo. Porque a qualquer momento podem ocorrer reviravoltas que modificam completamente essa equação.

E, embora a analogia com uma partida de futebol tenha relativa adequação, a vida engendra teias complexas de sentimentos, valores, emoções, fraquezas, ligações que tornam quase impossível uma avaliação no meio do caminho. Podemos no máximo nos perguntar se estamos gostando do jogo ou se está na hora de fazer mudanças mais significativas.

E não há época mais propícia para nos fazermos essas perguntas do que no final do ano.

A proximidade do novo calendário acelera esse questionamento. É como se a perspectiva de um novo ano incluísse possibilidades de mudanças menos disponíveis em outras épocas.

Também há uma sensação difusa de término, de ciclo se encerrando. Os rituais de final de ano intensificam essa sensação de que tudo foi tão rápido que nem percebemos direito como o tempo passou.

Minha mãe me fala de uma época em não tinhamos agenda, palm top e celular, e o tempo era medido por folhinhas de calendário arrancadas uma a uma. E o sentimento em relação ao tempo era exatamente o contrário, de tempo arrastado, medido pelas estações e pela colheita.

E em sua enorme sabedoria me diz: Se está passando rápido é por que está bom. Tempo ruim demora muito a passar.


quarta-feira, setembro 08, 2004

Mundo Real

Como será que a memória organiza as nossas lembranças?
Ordenadas, em catálogos indexados por importância?

Móveis, trocando de posição conforme o acontecimento do dia?
Misturadas, uma permeando a outra, ligadas por algum elo que não identificamos?

Soltas, livres para se apresentarem quando quiseram?
Obedientes, aguardando um chamado, um cheiro, uma voz que as tire de uma gaveta sombria e lhes devolva a cor e o brilho?

Que mistérios estão submersos em nós, esmaecidos sob um cotidiano de rotinas e tarefas, no qual mal ousamos questionar nosso estado de espírito? Como uma foto que, por estar no aparador da sala e sob nosso olhar cotidiano, não enxergamos mais.

E se a coragem fosse suficiente para rever as fotos, reler as cartas, revisitar sentimentos, rever as imagens mentais que guardamos com zelo inconsciente?

Me vem à mente uma estreita estrada, pó vermelho fino, mato crestado pela seca prolongada de agosto, ostentando uma camada empoeirada que igualava em tons de terra o pouco de verde que sobrevivera.

Quase todos os dias pelas duas da tarde eu percorria uns quatro kilometros nessa estradinha, até alcançar, uma frondosa mangueira, imune à seca e à poeira que um eventual e distante carro levantava na sua rota.

Repassando aquele ambiente na memória percebo a distância física e psicológica entre aquela menina de 12 anos e a mulher de 51 que escreve sentada agora, com o conforto de um suco gelado e uma temperatura agradável.

A árvore era um refúgio seguro e secreto, e ali eu podia ler sem medo os livros que tanto amava e que me ajudavam a criar um mundo imaginário tão forte que penetrava o mundo real e o transformava de verdade.

Sob aquela mangueira li inúmeros volumes de romances compactos da coleção de capa dura do Readers Digest e toda a Comédia Humana de Balzac, emprestados, um a um pelo meu professor de literatura.

Mais tarde, aos 15 anos, a criação desse mundo imaginário passou a ser um sistema de defesa complexo e relevante.

Já morava em Goiânia, estudava em um Colégio Católico para moças, onde passava o dia, e trabalhava à noite como garçonete em um bar de periferia de propriedade dos meus tios.

Pela manhã, meu mundo era de meninas de classe média alta se preparando para se tornarem boas esposas e mães, com educação primorosa, incluindo estudos de francês, latim e grego. No regime de semi-internato ficava no Colégio até ás cinco da tarde, depois dos estudos de filosofia e sessões de leitura, etiqueta, religião e história da arte.

Éramos então três bolsistas, as três meninas pobres que, á custa de notas exemplares, garantiam o direito de frequentar um mundo ao qual não pertencíamos.

No final da tarde ia direto da escola para o bar, o tempo suficiente só para trocar o uniforme. No final de semana o turno começava de manhã e ia até tarde da noite.

Convivia, de segunda a segunda, com motoristas de caminhão, pedreiros, carregadores, serventes, que ao final de um duro dia de trabalho, iam ainda sujos para o bar conversar, jogar bilhar ou beber.

Era gente simples e pobre, alguns agradáveis, outros nem tanto. No geral tinham em comum um certo traço de rudeza, que o trabalho duro e a vida sem recompensas vai desenhando na personalidade, na voz e no rosto. Depois de algumas horas o álcool cumpria sua missão, e a rudeza se transformava em grosseria, e daí para uma eventual briga era um passo.

A cada dia que passava era cada vez mais difícil sair do mundo sonhado do colégio e ir para a realidade do bar. Aos poucos, para sobreviver, fui aprendendo a não voltar mais para a realidade, ainda que tivesse que ir para o bar trabalhar.

Assim, os frequentadores passaram a receber nomes dos romances que lia, e a se portar de acordo com os personagens. Os romances russos forneceram muitos nomes e personalidades para aquelas pessoas.

Com o tempo já conseguia enxergá-los com outra roupa, com outra face, com outra voz. Passei a criar um dicionário de tradução para as frases que diziam e que tinha relação direta com o que eu lia durante a tarde no colégio.

Assim, para um personagem britânico, "põe aí uma dose de pinga!" significava "pode me servir um pouco de brandy?".

Depois o próprio ambiente passou a ser diferente, e a conter cada vez mais elementos imaginários que tornaram possíveis os anos que passei ali. Era quase um ensaio de teatro, onde só eu conhecia o texto e ninguém mais sonhava que fazia parte da peça.


Quando alguém estranhava, meu tio comentava: "ela é meio esquisita mesmo".

O elo que me mantinha na normalidade era a convicção profunda e absoluta que meu mundo imaginário é que era o real, e que atingi-lo era só uma questão de tempo e de vontade firme.

E olhando de agora, aquelas noites são distantes fotos amareladas de uma fase que definiu boa parte do que penso e do que sou hoje.



quarta-feira, agosto 04, 2004

Construir

Meses de discussão sobre o projeto e eis que algumas pranchas contêm o que será um dia a nossa casa.

Providências de aprovação na Prefeitura, adequação às regras do condomínio, perda de tempo, chateação e muito dinheiro para taxas e impostos de todo tipo imaginável. Orçamento, compra de material, movimento de terra, cansaço, manhãs de domingo e noites de sábado em análise de contas, projeções de custo e planilhas.

Um dia, cansada de comparar preços de aço de várias bitolas, pensei que tem todo fundamento o conceito de que construir uma casa é uma cansativa e desgastante odisséia, me ocorreu analisar o sentido exato da palavra construir.

Pego o dicionário e leio: Construir - Edificar, dar estrutura a, formar, conceber.

Fico pensando nos diversas sentidos dessas palavras e nas suas variações, sempre de conotação positiva: edificante, construtivo, estrutural.

E de repente, fica clara a sabotagem que estou fazendo comigo mesma ao encarar essa fase de construção como uma etapa de provação, obrigatória para a obtenção do resultado desejado que é a casa nova.

Ao fazer isso, deixo escorrer naquelas valas a chance de saborear essa experiência, de ver esse momento como ele realmente é: um processo construtivo.

De um modo geral, não é fácil reconhecer e apreciar as diversas oportunidades de alegria que temos, e que perdemos exatamente por sobrevalorizar os pequenos entraves e contratempos.

Outro dia, li numa crônica que os momentos realmente importantes estão ligados a "coisas pequenas, que nem foram notadas por outras pessoas: cenas, quadros: um filho empinando uma pipa na praia; noite de insônia e medo num quarto escuro, e do meio da escuridão a voz de um filho que diz: ´eu gosto muito de você!`; filha brincando com uma cachorrinha que já morreu, um velho, fumando cachimbo, contemplando a chuva que cai sobre as plantas e dizendo: ´Veja como estão agradecidas!´Amigos. Memórias de poemas, de estórias, de músicas."

E fiquei desfiando para mim mesma uma coleção de imagens de momentos assim simples, que preenchem nossa vida de forma definitiva, e nós só vamos nos dar conta disso muito mais tarde...Levar as meninas para a escola, preparar rabanadas no final do domingo, contar estórias sem fim, que continuavam meses a fio, ver o mar a primeira vez, o cheiro dos pêssegos da Praça da Alfândega de Porto Alegre, um pacote que chega pelo correio...

Rápidas, nem sempre fáceis, as experiências só têm a sua real importância reconhecida tempos depois de vividos. Como os paralelepípedos de Proust, chave para uma viagem "... que é uma impressão do passado... e que só podemos conhecer quando preservada, pois no momento em que a vivemos, ela não se apresenta à nossa memória, mas ao centro das sensações que a suprimem".

Dito de maneira menos elaborada, o que vivemos aqui e agora consome atenção demais enquanto estamos vivendo, para que possamos avaliar o seu impacto, e requer tempo - esse enigmático componente - para fazer sentido no novelo de uma vida.

Olho novamente para os buracos cavados na terra e que começam a se encher de ferro e concreto, e penso que um dia, ao consultar meu baú de tesouros, talvez encontre imagens dessa manhã de segunda feira, de céu azul, em que eu olhava para tudo isso preocupada com os custos crescentes do aço, e deixava passar um pedaço importante das emoções e forças potenciais do concreto que se ergue para edificar e construir o casulo de uma nova etapa da nossa vida.




sábado, junho 19, 2004

Os que escrevem e os que lêem

Outro dia li um post do Rafael Reinehr intitulado "Tem mais gente escrevendo que lendo".

De fato, tem ocorrido uma fantástica proliferação dos blogs, mesmo se excluirmos os diários adolescentes e pensarmos somente naqueles com temas que valem a pena ser lidos.

A leitura do post me levou a refletir um pouco sobre o dilema escritores x leitores, sem nenhuma análise quanto à qualidade do conteudo.

Assim, me parece que há realmente uma relação muito direta entre a quantidade de pessoas que escrevem e as que lêem, e esse não é um fato recente.

Mas a questão tomou outra dimensão, e só veio á tona, depois que a barreira de publicar caiu por terra, derrubada pela facilidade e simplicidade de publicar via blog.

A diferença é que as pessoas que escrevem porque é vital para elas, sempre o fizeram e continuam a fazê-lo, seja nos cadernos á la Proust, seja nos blogs de hoje.

Em paralelo, há um universo de pessoas, em cuja categoria me incluo, que gosta mais de ler e, ás vezes arrisca algumas linhas, sem qualquer pretensão que não um diálogo com meia dúzia de amigos.

Assim, uma grande maioria de blogueiros publicam esporadicamente sua visão de mundo e usam os blogs como mecanismo de relacionamento ou até de terapia. Até mesmo por essa razão são leitores de primeira linha.

Por outro lado, aqueles que escrevem porque está no DNA, encontram nessa multidão de publicadores eventuais um público assíduo, pronto a compartilhar e a quebrar o antigo vale existente entre o escritor e seu público.

Além disso, o escritor e o leitor agora não estão sujeitos á ditadura do mercado das editoras como ocorre hoje na música. Será fantástico quando esse fenômeno se repetir na música, pois não seremos obrigados a ouvir somente o que o mercado fonográfico nos impõe, com critérios que permitiram que o pagode afogasse a música brasileira de qualidade.

Com os blogs, as pessoas de talento que não tinham nenhuma forma de fazer chegar aos leitores a sua produção, têm agora o meio para fazê-lo. Do lado leitor, o volume dificulta um pouco achar as pérolas que estão disponíveis.

É um fantástico equilíbrio, com um potencial multiplicador ainda desconhecido pois os blogs ainda são de acesso muito restrito, pois muitos leitores e escritores não estão ainda nesse círculo.

São comuns os blogs com mais de mil visitantes por mês entre os que costumo visitar. É um volume de leitores nada desprezível. Quantos livros de estreantes vendem essa proporção?

É por isso que acredito que enquanto proliferam os que escrevem, numa proporção bem maior se multiplicam os que lêem.


A Leitora - Auguste Renoir
Musée d'Orsay, Paris

quinta-feira, junho 17, 2004

Amigos de verdade

Eles entraram na nossa vida aos poucos, muito lentamente.

Sempre os achamos muito simpáticos, mas não somos de aproximação fácil, assim, por muito tempo, nos mantivemos à pouca distância mas sem chegar muito perto.

Na quinta série, Cecília conheceu a Juliana, que muito rápido se tornou a melhor amiga. Os constantes contatos motivados pela amizade das nossas filhas, por anos a fio, criou um convívio típico de pais, que só conversam sobre destino e horários dos filhos.

Quando as meninas foram para o segundo grau, conversamos mais proximamente para compartilhar as visões sobre a melhor escola para elas. Daí para frente os contatos foram se intensificando.

No Reveillon de 2002 fomos juntos em Caldas Novas e lá ficamos por uma semana, curtindo as delícias das águas quentes e uma honesta champagne á beira da piscina. E, fato inesquecível, consumimos a modesta quantia de 200 unidades de bolinhos de arroz com queijo.

Uma semana foi mais que suficiente para descortinarmos melhor a personalidade dos nossos amigos e nos tornarmos bem proximos.

Assim, descobrimos na Lueli um bom gosto nato, associado a um equilibrio e bom humor infinitos. Excepcional na cozinha, faz uma torta de limão que nenhum mortal pode esquecer.

Elegante e refinada, consegue se mostrar de uma simplicidade inacreditável, além de ter um dom natural para decoração e para as plantas, em particular as orquídeas. Aprendo sempre com ela e com sua forma leve de ir fazendo acontecer.

No Chico descobrimos uma enorme vontade de aprender, de ler, de conhecer e de viver. Cheio de energia, gosta de ler, de conversar, de conviver, de viajar, de vinho, de cinema e de boa música.

Conservador em qualquer assunto ligado á família, consegue adotar rapidamente as novidades da tecnologia e ser aberto para descobrir outras formas de pensar.

Desde aquele fantástico reveillon não temos poupado oportunidades de estarmos juntos, em encontros onde um bom vinho nunca está ausente. São momentos muito agradáveis, que nos deixa com uma sensação de tempo bem aproveitado, de prazer mesmo.

Ao ler a carta que ele publicou como despedida do seu blog, fiquei emocionada com a sensibilidade e grandeza de espírito do Chico.

Assim pensei que eu, blogueira bissexta que publica muito esporadicamente, talvez pudesse interceder para que ele mantivesse o Tempo Destino, pois vai chegar uma hora que vai ser bom compartilhar um texto, uma imagem, uma emoção.

E também dizer que eles fazem a diferença, pois sem nos darmos conta foram aos poucos participando de nossa vida e a tornando melhor.

E que é muito bom ter amigos como eles...

domingo, junho 13, 2004

Tardes de Outono

Há dias que são absolutamente perfeitos. Tudo aconteceu da melhor forma possivel, com todos os ingredientes possíveis de alegria.

Porque ainda assim a tristeza nos visita?

Assim, sem mais nem porque, sem pedir licença, sem marcar visita, sem bater á porta.

Simplesmente chega e se instala. Não veio para uma longa temporada pois não veio com mala.

Pelo jeito é uma visita passageira, dessas tão comuns nos domingos á noite, que há tempos não aparecia.

Não veio trazida por um problema do passado, por uma perda ou por uma lembrança.

Veio misturada no por de sol em tons alaranjados, tomou corpo no chá de hortelã e se instalou com a música Sweet Memories de Ray Charles.

Não é dessas tristezas que pesam na alma, que subjugam o corpo, que vergam os ombros.

É um sentimento que se instala aos poucos, sorrateiro e insidioso, uma espécie de visgo que se cola á pele como o sereno frio da madrugada. De início nem parece real mas com o tempo dá a impressão de chegar aos ossos.

Instalado como está, esse sentimento tristeza é quase uma assinatura de contraponto ao latido alegre do nosso Collie Balzac, incansável na sua eterna e inútil missão de perseguir helicópteros e boeings, que, imagino, são para ele riscos terríveis á segurança da casa.

Tentei resistir um pouco à essa velha conhecida. Tenho muitos truques para mantê-la á uma distância segura.

Mas mudei de idéia.

Talvez devesse mesmo fazer esse exercício de outono, de perder as folhas a ponto de chegar na nudez dos galhos.

De olhar com mais pausar para tudo o que me rodeia com lentes mais amenas, não de quem organiza mas de quem percebe.

De olhar devagar e demoradamente ao contrário da visão en passant de sempre.

De mergulhar nos sentimentos sem precisar abrir nenhum armário de lembranças.

Quase um "Let it be".

Por que não?




quinta-feira, maio 27, 2004

Das mulheres

Os mais críticos que me perdoem, mas o texto de Affonso Romano merece uma releitura...

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A Mulher Madura

O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

O texto extraído do livro "A Mulher Madura" - Affonso Romano de Sant'Anna, Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986.




quarta-feira, maio 19, 2004

Tempo

A vida são deveres, que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são seis horas !
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, passaram-se 50 anos !

Agora, é tarde demais para ser reprovado...

Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.

Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas...

Dessa forma, eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido à falta de tempo. A única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais.

Mário Quintana


quinta-feira, maio 13, 2004

Olhando para a frente

..........Carta a uma pessoa querida, num momento difícil..........

Uma doença grave é uma luta para a qual nunca estamos preparados, nem devemos estar.

Há muitas outras provações na vida, mas certamente as mais duras são a perda de pessoas muito queridas e as doenças graves.

Agora posso te dizer com certeza, e com conhecimento de causa, que essa provação não pode inclur nem desânimo nem falta de fé, senão a carga fica maior que você pode suportar.

Nesses momentos o desânimo é o golpe de misericórdia que nos leva a desabar quando a paulada é grande.

Todos nós temos nossas fraquezas e com certeza vacilamos diante de provações.

A fé é um poderoso recurso para buscarmos o ânimo e a energia imprescindíveis para seguir em frente.

Não estou falando da fé cega.

Esta faz muito bem, mas poucos são os que conseguem ter uma fé cega e inabalável.

Falo da fé humana, da fé que surge da fragilidade, da sensação de desamparo, que pede ajuda, que se deixa ajudar, que roga a Deus mais energia porque já não pode encontrá-la mais em si mesmo.

Essa fé é confortante e pode fazer uma enorme diferença para você.

Então nem de longe pense que Deus te abandonou.

Talvez você tenha se abandonado um pouquinho, como uma criança que se desgarrou da mão da mãe na estação do metrô, mas que mesmo com medo, acredita que vai encontrá-la.

Não deixe de rezar e acreditar. Não deixe de fazer planos, de se envolver nos acontecimentos, de escrever (com lap top, á mão), de ler, de pensar e de sonhar. No hospital faça planos de leitura, de filmes a ver. Peça um walkman para ouvir musica. Olhe revistas de decoração e pense em como seu quarto em casa ficaria bem se você trocasse a cor.

Faça planos com datas marcadas e planeje de verdade como vai viabilizá-los. Se você não tem recursos para viabilizá-los inclua nos seus planos como conseguir os recursos. E se aferre a esses sonhos.

Não aceite “se”.

O “se” pode te fazer mais mal que esse novo tumor que será extraído em breve.

Acredite com todas as forças de que dispõe e quando achar que está fraquejando peça ajuda a Deus com vontade.

A frase clássica que diz que “a fé remove montanhas” tem todo sentido porque a fé movimenta a sua vontade que por sua vez arrebanha uma poderosa energia dentro de você.

O medo paralisa e tem foco na sombra. A fé impulsiona e tem foco na luz. A fé pode ser traduzida como uma vontade firme de superar, de atravessar o vale escuro, de vencer a provação.

Desejo a você toda a coragem do mundo, e uma dúzia de pessoas queridas que tornem essa etapa de sua vida mais suportável.

Todo o meu carinho para você.




Henri Cartier-Bresson
Sifnos 1961

segunda-feira, maio 10, 2004

Fraquezas

Cada encontro está carregado de perda. Ou de perdas. Ou é invadido por uma inexplicável melancolia. O encontro humano é tão raro que mesmo quando ocorre, vem carregado de todas as experiências de desencontros anteriores. Cada desencontro é perda porque é o oposto do que teria sido uma possibilidade de afeto.

É a experiência de desencontros que ensina o valor dos raros encontros que a vida permite.

Mas por isso ou por aquilo, cada encontro está carregado de perda. E no ato de sentir-se feliz associa-se a idéia do passageiro que é tudo, do amanhã cheio de interrogações, da exceção que aquilo significa. A partir daí, uma tristeza muito particular se instala.

Há sempre uma despedida em cada alegria. Há sempre um E depois? após cada felicidade. Há sempre uma saudade na hora de cada encontro. Antecipada."

Que intenso é o efeito que a coleção de encontros e desencontros que acumulamos na vida tem sobre a nossa personalidade, a forma como nos relacionamos com as pessoas e como interpretamos as diversas atitudes das pessoas importantes para nós.

Durante a vida, enquanto adquirimos maturidade, bens, conhecimentos, títulos, peso, cabelos brancos, também armazenamos perdas. Perdemos pessoas importantes, algumas pela inevitabilidade da morte, outras porque simplesmente abandonamos ou nos abandonaram. Aos poucos vamos nos distanciando da imagem da juventude, cada vez mais idealizada e distante do que nos mostra o espelho.

Desistimos de sonhos e crenças, soterramos a maior parte das nossas expectativas de carinho sob muita praticidade e um jeito mais moderno de ser; aprendemos a censurar a gargalhada espontânea, a nossa ingenuidade e pureza, a resposta rápida e sincera, a pergunta pessoal e como conseqüência perdemos a naturalidade.

Obrigados a criar defesas, procuramos esconder a fragilidade da criança sob a aparência do adulto e nos tornarmos sérios, práticos, professorais, ajuizados e, finalmente conseguimos perder a nós mesmos.

Somente em raros momentos de descontração, em situações que consideramos seguras, conseguimos ser livres e passar por cima da autocensura. Por instantes, somos autênticos. É que não é fácil correr o risco de ter nossas palavras mal interpretadas, acostumados a expor nossas forças e a esconder nossas fraquezas.



Downtown, New York, USA, 1947
Henri Cartier-Bresson
Não resisti e copiei do site Et Alors



domingo, maio 09, 2004

Uma mulher e tanto

Dia das mães é mesmo um dia especial.

A começar pela dificuldade de se encontrar uma mesa vazia em um restaurante.

É que no dias das mães ninguém quer sentir o desconforto de ser servido pela homenageada, como em todos os outros dias do ano.

Se estou passando a sensação de um protesto pelos outros 364 dias, convém esclarecer que não é esta a intenção. Até porque sou da velha geração, que leva a cerveja ou a taça de vinho para o marido na sala de televisão.

Não tive filhos homens, mas trato meu genro como se fosse meu filho e também para ele levo a bebida e o tira gosto sem que ele precise interromper o jogo para ir a cozinha.

Meu papel profissional não interfere em nada com o lado dona de casa.

Não importa em quantas cidades estive a trabalho, volto do aeroporto e vou direto para a cozinha preparar algum petisco que recompõem o sentimento de lar.

Tenho a sorte de pertencer ao grupo de pessoas que tem na mãe a inspiração e o modelo para seguir.
Aos 72 anos, minha mãe viajou sozinha em umas férias curtas para o Chile onde não conhece viv´alma.
Filha de familia pobre no interior de Goiás, D. Carmem passou a infância às margens do Paranaíba, em uma casinha de pau-a-pique.

Sem nenhum incentivo para isso, se afeiçoou aos livros, obtidos com dificuldade e lidos com a escassa luz de lamparina, sob as broncas do pai, preocupado com o consumo de querosene, coisa de luxo naquela época.

Aos 20 anos, seu primeiro parto foi de gêmeos, que morreram com menos de duas semanas de vida.
A próxima fui eu, doentinha e franzina. Nada parava no estômago da menina fragilzinha, sempre ameaçando ir seguir o mesmo caminho dos primogênitos. Apavorada, D. Carmem tentou de tudo para dar sobrevida ao seu bebê. A eficiência da alquimia utilizada me garantiu um estômago de ema, que tem na comida um fraco e tanto!

No total, oito filhos povoam a vida de D. Carmem, cada qual com sua série de filhos, garantindo à sua terceira idade (ai de quem falar em velhice) um séquito de convidados para os almoços de domingo.

Criatividade é com ela mesma. Precisa de uma nova televisão ou de uma nova mesa de almoço? Ao invés de pedir de presente, ela faz um almoço beneficente, e vende ingressos a preços de Fasano para interessados. Por que beneficente? Porque não é bonito "um almoço de arrecadação".

O coração grande não se contentou com os oito filhos. Em tempos muito difíceis adotou uma afilhada, que considera como filha e que morou conosco desde os quatro anos de idade.

Quando apresentei a ela meu candidato a marido, ela se afeiçoou por ele de imediato e o adotou também.

Passados quase trinta anos, posso afirmar com certeza que ela não o distingue de nenhum de seus filhos.

Preserva o amor pelos livros, que consome vorazmente, lendo uma média de três horas por dia, todos os dias. Ainda trabalha, de segunda a sábado, chefiando a produção de bolsas e sapatos finos. E ai de quem disser que ela deveria parar de trabalhar, ou de viajar.

É para essa mulher magnifica, um modelo e um exemplo para mim, que dedico esse dia.



sexta-feira, maio 07, 2004

Os signos atravessando a rua

Por que que o ARIANO atravessou a rua?
Certamente para bater boca com alguém que estava do outro lado.

Por que que o TAURINO atravessou a rua?
Porque encasquetou com a idéia.

Por que que o GEMINIANO atravessou a rua?
Se nem ele sabe, como é que eu vou saber?

Por que que o CANCERIANO atravessou a rua?
Porque estava se sentindo só e abandonado deste lado de cá.

Por que que o LEONINO atravessou a rua?
Para chamar a atenção, sair nos jornais, revistas, etc.

Por que que o VIRGINIANO atravessou a rua?
Ele ainda nao atravessou porque está medindo a largura da rua, a velocidade dos carros, se essa experiência é válida, qual seria a melhor hora de atravessar essa rua, etc.

Por que que o LIBRIANO atravessou a rua?
Ele nem precisou atravessar. Alguém acabou oferecendo carona para ele.

Por que que o ESCORPIANO atravessou a rua?
Porque era proibido.

Por que que o SAGITARIANO atravessou a rua?
Porque a idéia pareceu maneira e deu vontade.

Por que que o CAPRICORNIANO atravessou a rua?
Na verdade ele estava tentando se matar por atropelamento.

Por que que o AQUARIANO atravessou a rua?
Porque isso faz parte de uma experência que trará incontáveis avanços tecnológicos no futuro.

Por que que o PISCIANO atravessou a rua?
Que rua? Ih, é ....



segunda-feira, março 29, 2004

Inspiração

Muitos amigos encerraram seus blogs. Alguns de forma temporária, outros para valer.

Há dias esse tema tem me instigado. Há dias atrás perguntei a um grande amigo que mantém seu blog como estava sendo a experiência para ele. E a resposta me surpreendeu muito: "Tenho me questionado muito sobre se vale ou não a pena. Às vezes, simplesmente, nada tenho para dizer e no fim fico me cobrando e preocupado com a ausência de posts."

Também comigo é um pouco assim. Fico um tempão com absoluta falta de temas para escrever.

Diferentemente de pessoas altamente inspiradas, e temos várias em nosso meio, sou uma criatura absolutamente comum, e, por isso mesmo, os fados (ou dardos) da inspiração não me frequentam. A bem da verdade, só de vez em quando me aparece uma idéia, mas isso não é constante.

Quando comecei o Sherazade pensei principalmente em compartilhar os longos diálogos silenciosos que mantenho comigo mesma enquanto dirijo, enquanto espero, quando olho para o teto ou para o chão lá em baixo, nas frequentes viagens.

Mas quando vou escrever sempre acho os frutos dessas conjecturas simplórios demais para serem compartilhados.
Raramente, uma idéia me parece digna de ser desenvolvida. E, assim, fico semanas com absoluta falta de um tema que puxe o fio do novelo para um post decente.

Sempre gostei muito de estórias, de ouvi-las e de contá-las.

E o espírito humano criou infinitas formas de contar estórias, chegando hoje a mais recente versão eletrônica: os blogs. Algumas pessoas tem uma ansiedade natural por publicar, com temas interessantes acumulados em filas respeitáveis, aguardando a sua vez de serem desvendados...

Para essas pessoas tudo é tema interessante, e é fácil começar sem medo de se perder no labirinto do seu universo interior, este grande fermentador do impulso por comunicar.

Para essas pessoas as percepcções se organizam e se misturam como correntes de águas multicoloridas, gerando formas e deformando as imagens recem criadas.

Mas ás vezes esse universo interior se recolhe atrás de alguma porta imaginária, da qual não conseguimos a chave.
Falar de que? Porque? A quem interessaria o tema x ou y?

Como o Sherazade se propõe a ser uma atividade prazerosa, também não me cobro muito. Escrever os posts ainda é para mim um reduto de prazer e não pode se tornar obrigação, as quais já tenho em quantidade acima e além do desejável.

Por tudo isso, ainda não me coloquei o dilema que percebo em alguns amigos: manter ou não o blog.
E vou seguindo adiante como uma bloguera bissexta, tendo como leitores somente os amigos, pois este relevam o fato de verem sempre o mesmo post semanas a fio...


domingo, março 14, 2004

Oceano interior

O que pensam essas pessoas enquanto dirigem nesse mar de carros da Avenida Paulista nesse início de manhã cinzenta?

A maior parte dos rostos que vejo mostra expressões compenetradas, dando a impressão de que o sinal fechado é a senha para mergulhar em um mundo complexo e questionador.

No que pensa essa senhora bem penteada, olhando para frente determinada e firme, como se seu carro brilhoso tivesse que arrancar e ganhar a primeira posição do grid de largada? Estaria com pressa de chegar ao trabalho para evitar olhares de censura pelo atraso? Pensaria que tem que aproveitar o horário do almoço para resolver alguns problemas da casa? Ou está se lembrando dos longos silêncios de ontem à noite?

Todos temos nosso oceano interior que aflora em frestas ou nos inunda.

Eu me lembro da música “não, não posso parar, se eu paro eu penso, se eu penso eu choro”, como se fosse possível fugir de si mesmo indefinidamente. Se é possível esquecê-lo por algumas horas, não há como ignorar nosso mundo interior quando olhamos para o teto à noite, ou para um ponto indefinido em qualquer momento do dia.

Ele está sempre lá, influenciando nossas atitudes, refluindo nos momentos de decisão, como um mentor difuso, integrante de nós.

Às vezes transparente e calmo, não raro tumultuado e tempestuoso esse universo habitado por pessoas, imagens e sentimentos também é pleno de lacunas, de silêncios, de palavras não ditas, de indagações "e se?".

Mistura lembranças de cheiros e sabores, a cor da roupa numa data especial, as lágrimas de uma forte decepção, um momento de profunda alegria, várias manhãs de Natal, o medo das contas a vencer, o terror das contas vencidas, o desejo negado, um olhar terno, o sonho adiado.

Às vezes o oceano interior é cheio de sombras, soterrado em mágoas não resolvidas, escurecido pela amargura. Ou se parece mais com áreas abertas e ensolaradas, onde os fantasmas foram banidos pela claridade.

Mas me parece mesmo que transitamos entre os dois, como se nossa morada interior nos permitisse andar de um lugar para o outro, alternando-nos entre sonhos acalentados, esperança de afeto, e no momento seguinte um silêncio de portas fechadas.

O sinal abre e os carros se vão, alguns deixam a Paulista e pegam a Frei Caneca.
A senhora do carro prata continua em linha reta, sem olhar para o lado...
Talvez ainda esteja pensando no silêncio de ontem à noite...


"Eu sempre te disse que era grande o oceano para a nossa pequena barca."
Cecília Meireles



sábado, março 06, 2004

Boa intenção

Quando Maíra fez quinze anos, seu presente de aniversário foi uma viagem à Europa.

Havia muita expectativa das meninas nessa viagem pois seria a primeira viagem internacional delas, já que durante muitos anos elas ficavam com a avó aguardando nosso retorno. Além da saudade, cada retorno sempre tinha a expectativa de presentes, bonecas Barbie e estórias de montanhas, aventuras e lugares retratados nas cores que nossa modesta Olimpus Trip-35 conseguia registrar.

Essa viagem teria uma grande novidade para nós também: depois de rever amigos queridos na França partiriamos pela primeira vez rumo à Itália.

Isso significava que atravessaríamos os Alpes de carro no final do inverno.

O ritual de preparação da viagem incluiu a compra de casacos e roupas de inverno. Seria uma missão dificil para quem já tinha contabilizado no orçamento quatro bilhetes aéreos e hotel para 28 dias de viagem. Além disso, não é tarefa simples comprar roupa de inverno em Goiânia. Uma amiga deu a dica preciosa: vá ao Bazar do PT.

Assim, a fonte dos belos casacos de cashemere, dignos de enfrentar as nevascas do Alaska, foi um brechó do PT que recebia roupas de inverno doadas por europeus, e que sob o sol de Goiânia, não faziam nenhum sucesso.

No tal Bazar roupas de inverno de primeira linha eram vendidas por quase nada, por absoluta falta de mercado. Para minhas meninas experimentar e escolher as roupas de inverno foi uma festa. E eu me apaixonei perdidamente por um casaco verde.

Chegando em casa com meu elegante casaco, depois de buscá-lo da lavagem a seco, fui colocá-lo com todo cuidado no guarda-roupa, ainda no plástico protetor da lavanderia, à espera do dia de portá-lo nas montanhas nevadas de Chamonix.

O ato de colocá-lo no cabide e pendurá-lo me fez pensar no momento oposto, em que ele deixou uma casa européia para fazer sua viagem até Goiânia.

Tentei imaginar o momento em que uma senhorita ou senhora teria aberto seu guarda-roupa em algum lugar da Europa e escolhido entre as roupas dependuradas, as peças das quais ela poderia abrir mão.

Pelo estilo do casaco em tom verde escuro, bem cortado, etiqueta francesa, praticamente novo, ela não era uma operária. Certamente pôde escolher entre vários outros que possuía, ou porque não lhe faria falta, ou porque acreditava profundamente que sua generosidade faria a diferença de alguma forma.

Saberia ela que o destino de seu casaco seria uma doação para ser distribuída entre diversos partidos de esquerda no mundo, ou já teria a destinação expressa de ajudar os companheiros de esquerda que naquele início de 1994 tentavam estabelecer o Partido dos Trabalhadores no Brasil?

Pensaria ela que uma outra mulher, muito menos favorecida pela sorte, ficaria livre do frio no dia a dia de sua vida de operária, com aquele aconchegante casaco de cashemere? Ou pensava ela em uma outra mulher idealista, que também lutava pela causa dos pobres e oprimidos em terras distantes, sob inverno inclemente?

Ou ainda teria ela sido convencida da nobreza de seu gesto, a ponto de destinar seu melhor casaco para a causa do partido, ou seria ela alguma universitária que, nos anos 90, professava o ideal da esquerda, sob o teto de alguma casa rica, como parte do charme associado à visão de um mundo mais justo e igualitário?

Na segunda hipótese, talvez tenha ela separado o casaco, ao chegar em casa depois de uma longa discussão sobre os males do capitalismo, tema obrigatório em discussões de estudantes que se encontravam em bares fechados, encontráveis em qualquer cidade européia com uma boa universidade, onde se respirava uma fumaça de cigarros de cortar com faca.

Quis o destino que o tal casaco viesse parar sob o céu e o sol de Goiânia, nos ombros de uma senhora que estava a anos luz de lutar pelo futuro do PT e que comprara o casaco para consumar um dos ritos mais simbólicos da pequena burguesia: viagem à Europa para comemorar os quinze anos da filha.

E nesses dez anos o casaco foi um excepcional companheiro nas viagens de trabalho e de lazer. Até que nesse final de ano foi substituído por um novo, dessa vez adquirido em uma loja da Pensilvânia.

O novo casaco tinha a nobre missão de fazer bonito no casamento de minha filha, a mesma menina que, aos quinze anos me viu escolher o velho casaco verde, e que agora, aos 24 anos, me acompanhou na compra do novo.

De volta a Goiânia, o casaco verde encontrou finalmente seu destino: os ombros de Luíza, minha fiel escudeira há muitos anos, que torna possível que eu enfrente tantas lutas, com a retaguarda garantida, nos bons almoços que prepara e na casa mantida em ordem.

Também quis o destino que o tal casaco fosse fundamental em uma das situações mais constrangedoras que já vivi. Mas isso já é outra história, e um outro post...


terça-feira, fevereiro 03, 2004

Muito Especial

Ele me chamou atenção pela primeira vez no auditório da Escola de Engenharia, assistindo a uma aula de Geometria Analítica. Sentado ao meu lado, um jovem magrinho levanta o braço e dirige uma pergunta ao professor.

Era apenas um entre os quinhentos rapazes que frequentavam as matérias do básico. Voz cheia, de locutor de rádio, firme, desproporcional ao corpo franzino. A pergunta era inteligente e mereceu uma longa dissertação do professor.

Semanas depois nos encontramos na sala de desenho técnico, matéria que era meu terror. Paciente, me deu algumas dicas preciosas sobre perspectiva.

Aos poucos fui sabendo mais sobre ele. Tinha entrado na Universidade com 17 anos. Morava na Casa do Estudante e não tinha dinheiro nem para o lanche.

Tentava de tudo para conseguir uns trocados, incluindo vender carnê do Baú da Felicidade. Já tinha sido ajudante no cultivo de horta e escrevera carta que os meninos do orfanato enviavam para os padrinhos americanos (a la Central do Brasil). Foi auxiliar de alfaiate (onde aprendeu a passar camisas como ninguém), auxiliar de eletricista e por último dava aulas de matemática e física.

Estava deslumbrado com a liberdade de morar sozinho e ainda era muito religioso. Até os seis anos fora criado pela avó. Aos sete anos foi morar num orfanato junto com outras 99 crianças. Para ele a figura de pai e mãe era do casal que dirigia a instituição, e a única noção de família vinha da figura querida da avó.

Aos quinze anos, conheceu a mãe biológica e desgostou um pouco do que encontrou. Talvez ela fosse muito diferente da imagem que tinha idealizado. Do pai nunca soube sequer o nome. Ficava constrangido ao preencher fichas de identificação e deixar o nome do pai em branco.

O orfanato, mantido por missionários americanos protestantes, mantinha as crianças sob uma educação muito rígida e de muita disciplina, incentivando fortemente os estudos e a prática religiosa. No recreio e nas horas vagas seu lugar preferido era a biblioteca da escola.

Aos quinze anos foi para o seminário para se tornar pastor. Primeiro porque era excelente orador, depois porque era excelente aluno: terminou o ginásio com média global 98, feito inédito até então.

Depois de dois anos no seminário desistiu de ser pastor. Queria ir morar na capital, entrar na Universidade, ser Físico Nuclear, experimentar a vida, viver por si mesmo.

Comeu o pão que o diabo amassou. Morou de favor aqui e ali até conseguir uma vaga na Casa do Estudante. Quando o conheci, já dava aulas de física numa escola de segundo grau.

Seu guarda-roupa tinha três camisas, duas calças de brim, uma jaqueta jeans e um gravador de fita cassete (um Evadin) comprado a prestação. E muitos, muitos livros...

Sempre foi especial em tudo, até nos exageros.

Na busca de ganhar melhor passou num concurso para escrivão. De manhã era aluno da Física e militante de esquerda (um socialista cristão). À tarde, era escrivão, obrigado a ouvir os depoimentos dos presos da ditadura, no auge da repressão. Fazia o que podia.

Várias vezes foi repreendido pelo seu chefe, por participar de passeatas de estudantes. Com seu jeito de bom menino acabava por conquistar as pessoas e sempre achou quem o protegesse do pior. Até que um dia não suportou mais a pressão e se demitiu.

Foi trabalhar na Caixa Federal. Para desespero geral desistiu da Física no semestre da formatura.

Foi começar tudo de novo no curso de Publicidade. Em pouco tempo obteve quatro diplomas: Publicidade, Relações Publicas, Jornalismo, Radialismo, e depois MBA em Marketing.

Fez carreira na Caixa. Chegou a assessoria de imprensa da Presidência da CEF. Um dia, teve que escolher entre manter o cargo ou continuar a participar da liderança dos movimentos de esquerda. Deixou o cargo.

Idealista, sempre acreditou que podia fazer a diferença.

Aos poucos foi encontrando seu lugar no mundo.

Publicou dois livros de poesia, tornou-se católico, desistiu da militância de esquerda, trabalha como um danado na empresa da qual é sócio e acredita que seu papel hoje é gerar empregos.

Dezenas de viagens ajudaram a aprimorar o domínio de francês, inglês e espanhol.

Sabe escolher e servir um bom vinho, adora Mozart, já não é mais tão magrinho, e conseguiu um tom prateado nos cabelos.

Apesar do pouco tempo livre que tem, nunca deixou de lado a literatura, sua grande paixão, depois, é claro, do amor de sua vida: nós - as Amaral Queiroz, as três fãs de carteirinha.

E que temos o maior orgulho de fazer parte da vida de alguém tão especial, o nosso Beto, ou Zadig, ainda mais no seu aniversário de 49 anos, nesta quinta-feira.

sábado, janeiro 31, 2004

O sorriso de Mona Lisa




Ao sair do cinema, as imagens das filhas da elite americana que estudavam em Wellesley, e o ambiente conservador mostrado em "O sorriso de Mona Lisa" me fizeram transitar da aristocrática Boston para uma pequenina cidade de Goiás, onde passei a adolescência.

A estória da professora de artes vivida por Júlia Roberts, que teve diversos namorados e ainda não era casada, teria cores e intensidade bem diferentes para os costumes severos das famílias de todas as classes sociais que viviam no interior do Brasíl.

Distantes dos ecos do livro O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, em pequenas cidades perdidas no meio do Brasil, homens e mulheres construiam o país que herdamos baseado em regras rígidas e fortes punições.

Uma das regras vigentes, e que desde pequena aprendi, era que existiam três tipos de mulheres: as moças de família, as moças levianas e as prostitutas, sendo muito fácil "descer a ladeira" dessa classificação, e impossível subi-la.

As moças de família eram criadas para se casarem, para serem boas esposas, mães e donas de casa. Dedicadas e discretas, respeitavam os pais, e não se deixavam levar por intimidades com os rapazes.

Já as moças levianas não chegavam a ser prostitutas, mas nenhum rapaz em sã consciência aceitaria como esposa uma moça leviana, ou na versão popular, uma "biscate".

Em geral essas pobres moças haviam sido seduzidas e perdido a virgindade, e sobrava para elas ser amante de homens casados, ou casos temporários de algum rapaz solteiro. Perdida a beleza só restava á elas se tornarem prostitutas.

Esse era o terror de todas nós, adolescentes de então, que móravamos a milhares de kilômetros de distancia dos grandes centros. Ricas, remediadas ou pobres, todas morriam de medo de "perder a honra".

Enquanto escrevo penso em como essas frases soam de modo estranho e inadmissível até para mim mesma. Imagino que para as meninas de hoje deva parecer ficção pura.

Mas era assim.

A mãe se encarregava desde cedo a ensinar à menina o trabalho de esposa: cozinhar, costurar, limpar, cuidar de crianças, odedecer e cumprir seus "deveres conjugais". Essa enigmática expressão, sempre pronunciada em tom mais cerimonioso, jamais merecia grande explicação e soava mais como um sacrifício desconhecido mas imprescindivel para quem queria se realizar na vida, tendo casa e filhos.

Do rapaz, o pai se encarregava: "Meu filho, temos que ter uma conversa de homem para homem. Você já está na idade de...’

Os costumes se preservavam pela repetição do modelo, de pai para filho e de mãe para filha, sem nenhuma informação ou influência nova que pudesse atravessar as estradas poeirentas e esburacadas que separavam a pequena cidade de Itapuranga do mundo civilizado.

A não ser os livros. Raros, proibidos, vistos como agentes de subversão.

Em 66, apenas dois anos antes do festival de Woodstock, o interior do Brasil se regulava por costumes do século passado.

Exatamente nessa época comecei a ler os dezoito volumes da Comédia Humana, e a sonhar com a vida parisiense e os personagens de Balzac. Também nessa época o mundo começou a ter para mim uma dimensão maior que os limites da pequena cidade de uma única praça e igreja.

E enquanto eu fugia do meu cotidiano pela literatura, uma jovem senhora, nossa vizinha e mãe de um colega meu de escola, foi expulsa de casa.

Ela havia se casado aos treze anos com um viúvo de mais de 40, num casamento arranjado pelos pais.

Aos 29 tinha um filho de 14 anos, e um marido grosso, a camisa mal abotoada deixando aparecer a barriga proeminente, dono de um armazém, incapaz de enxergar a carência afetiva da esposa.

As más linguas diziam que ela queria ter mais filhos mas que ele "já não dava mais no couro".

Até que um homem da capital que vendia mercadorias para o armazém descobriu no olhar tristonho e na beleza comum de nossa vizinha um encanto especial.

Bem vestido, educado, viajado e habituado a cultivar romances em sua rota de negócios, foi fácil para ele conquistá-la.

Por algum tempo as coisas correram bem pois o sedutor vinha apenas uma vez por mês para a cidade. Até que aconteceu o pior: ela ficou grávida e em pouco tempo toda a cidade comentava a estória.

Ao marido traído, pelos costumes da época, só restava expulsá-la de casa.

Sem meios para sobreviver, sem chances de ser aceita na casa dos pais que tinham outras moças a casar e não podiam ter a reputação manchada pelo comportamento da irmã, a mãe de meu colega não teve outro recurso que buscar abrigo e sustento na "zona", abreviatura usada na época para designar "zona de meretrício", área demarcada na periferia da cidade, que tinha as casas sinalizadas por luzes vermelhas.

Essas estórias tão corriqueiras na minha adolescência, coloridas com os tons avermelhados da terra batida que pavimentava as ruas da cidade, tem pouco ou nenhum contato com os tons sépia da aristocrática Boston dos anos 50, e a refinada elegância das moças de Wellesley.

Sequer parecem ter ocorrido no século do celular, da proliferação da Internet e da clonagem. Mas ocorreram há pouco mais de 30 anos. E mostram que em uma geração as mudanças nos costumes foram gigantescas, e nós, cada um á sua maneira, construímos um mundo muito diferente para nossas filhas e filhos.

quarta-feira, janeiro 21, 2004

Do tempo

Nessa noite de chuvinha fina e temperatura amena em Goiânia, busco coragem no fundo da alma para renunciar a um cálice de vinho tinto. Tenho um preço a pagar na volta das férias e as calorias estão contadas. E numa noite de chuvinha fina, vinho e aconchego são gêneros de primeira necessidade.

Sempre gostei da chuva em todas as escalas, até mesmo as tempestades com raios e trovões e água torrencial. E há uma beleza selvagem na forma como o céu se carrega em tons ameaçadores, dando uma noção prévia do que virá pela frente. As tempestades sempre me pareceram uma demonstração de força da natureza, uma forma de nos relembrar quem é que manda, no frigir dos ovos.

Essa chuvinha fina me remete mais ao sentido de continuidade, persistência, constância. Quase uma modificação do sentido do tempo que toma uma velocidade diferente, mais lenta.

Olhando por um prisma mais amplo, me dou conta de que cinquenta verões se passaram diante dos meus olhos e com eles vários dias de chuvas finas ou tempestades teatrais. Nem todos fáceis. A maioria valendo cada gota de chuva.

E um novo janeiro inaugura um novo numerador.

"A sensação de tempo, como a da cor, é uma forma de percepção. Assim como não existe cor sem olho que a distinga, também um instante, uma hora ou um dia nada significam sem um evento qualquer que os marque. E assim como o espaço não passa de uma possível ordem de objetos materiais, também o tempo não passa de uma possível ordem de acontecimentos." Albert Einstein, nessa fantástica frase derramou mais conhecimento da alma humana que da física quântica.

Rápidos, nem sempre fáceis, os dias só têm a dimensão da sua real importância depois de vividos. Como os paralelepípedos de Proust, chave para uma viagem:
"... que é uma impressão do passado... e que só podemos conhecer quando preservada, pois no momento em que a vivemos, ela não se apresenta à nossa memória, mas ao centro das sensações que a suprimem".

Dito de maneira menos elaborada, o que vivemos aqui e agora consome atenção demais enquanto estamos vivendo, para que possamos avaliar o seu impacto, e requer tempo - esse enigmático componente - para fazer sentido no novelo de uma vida.

É assim que olho para esse janeiro, tão novo e ao mesmo tempo tão conhecido, emoldurado pelas mesmas janelas, pelas mesmas árvores que plantamos e ao mesmo tempo com tantos sonhos e expectativas dessa nova fase que se inicia.

Os bons verões, como as boas colheitas, são construídos na rotina das horas, na percepção das inúmeras oportunidades das pequenas alegrias.