sábado, novembro 29, 2003

da sensação de Lar

Um dia alguém criou a palavra lar para diferenciar o lugar psicológico do imóvel.

Lar é um conjunto de cheiros, cores, sons, formas e, principalmente, de sentimentos. É um estado de espírito, uma sensação de intimidade, de aconchego e de proteção.

O lar é onde a vida começa e termina; é o principal referencial de existência da espécie humana, na medida em que é uma forma concreta do abrigo, da proteção contra as intempéries e outros perigos potenciais. O lar é o pivô de uma rotina diária. Vamos a todos os tipos de lugares mas sempre retornamos ao lar.

Acho que essa sensação que se quer passar quando se fala "do repouso do guerreiro".

Anos atrás, numa viagem com duração de quase dois meses, em que se sucediam cidades, hotéis, estradas, línguas diferentes, um certo desconforto e irritação começou a se instalar em nosso espírito. A única referência constante era o carro, que passou a representar de forma canhestra o papel de lar pois era para onde voltávamos sempre.

Hoje, depois de três dias no hospital, em função de uma cirurgia de apêndice, pude sentir a força da atenção e do carinho que recebi da minha família, dos amigos e, principalmente, do meu companheiro há 28 anos, que fez plantão em período integral ao meu lado.

E hoje, ao entrar em casa, coisas banais como um café quentinho, o latido do Balzac, a maciez da cama, as flores do jardim e, até mesmo, uma musiquinha banal do Elton John me pareceram amostras do paraíso.



segunda-feira, novembro 24, 2003

da ausência de inspiração

Ás vezes é frustrante a absoluta falta de um tema que puxe o fio do novelo para um post decente, principalmente para quem se intitula Sherazade - a contadora de estórias.

Sempre gostei muito de estórias, de ouvi-las e de contá-las.

E o espírito humano criou infinitas formas de contar estórias, chegando hoje a um inacreditável volume dividido entre os livros, o cinema, o teatro, a tv, as diversas formas escritas, incluindo os folhetins e a mais recente versão eletrônica: os blogs.

Em algumas pessoas há uma ansiedade considerável por publicar, com temas interessantes acumulados em filas respeitáveis, aguardando a sua vez de serem desvendados na blogsfera...

Para essas pessoas tudo é tema interessante, e é fácil começar a esticar o fio de Ariadne sem medo de se perder no labirinto do seu universo interior, este grande fermentador do impulso por comunicar.

Nele as percepcções se organizam e se misturam como correntes de águas multicoloridas, gerando formas e deformando as imagens recem criadas.

Mas ás vezes esse universo interior se recolhe atrás de alguma porta imaginária, como que a se esconder da página branca, desafiadora, plena de armadilhas...

Falar de que? Porque?

E permanece a página em branco...




terça-feira, novembro 18, 2003

Minha Menina

Minha menina vai se casar...

Assim, no meio da tarde, no meio do serviço, fico sabendo que meu bebê de 24 anos vai se casar. O anúncio feito por telefone tinha um tom emocionado na voz. Um tom trêmulo indicava forte emoção, dela e nossa.

É claro que esperávamos por isso há algum tempo.

Completamente apaixonada, ela achou a alma gêmea e está feliz como nunca.

O casamento foi decidido esta semana e será ainda em dezembro. Porque essa correria? Além de estarem absolutamente enamorados, meu futuro genro terá que mudar para o Texas no inicio do ano. Assim, decidiram casar logo e irem juntos.

Mas por mais que eu pense nisso, ainda estou sem acreditar: minha menina vai se casar e vai continuar morando nos Estados Unidos. Daqui a pouco assumirá as responsabilidades de esposa.

Há cinco anos atrás, quando a levamos para fazer o teste para a Universidade da Carolina do Sul, era ainda uma garotinha assustada com o fato de viver sozinha em outro país e ao mesmo tempo realizando o seu grande sonho. Dez dias depois ligava em prantos, querendo voltar e desistir de tudo. Na época eu disse a ela que se ela voltasse sem nem tentar superar as primeiras barreiras, ela passaria o resto da vida imaginando como teria sido se ela tivesse ficado...

E ficou. Para nós era o desafio de nos ver vermos só uma vez por ano. Por outro lado o Natal e o final de ano passaram a ter outro brilho: todos contando os dias para sua chegada.

Do aeroporto vamos sempre para a confeitaria para ela matar a vontade de comer empadinha, quibe e guaraná. Depois uma churrascaria. A irmã mais nova ri dessa agonia para comer tudo no primeiro dia, talvez por não compreender que não se trata só de comer, mas de sentir de perto um mundo de conexões com o lugar, as pessoas, os hábitos, os cheiros.

Agora estamos diante de um fato concreto que nos indica com todas as letras que nossa menina cresceu, e nos seus esplêndidos 24 anos, está adulta e vai se casar. A razão nos diz que isso é excelente, o namorado é uma pessoa excepcional, estão muitissimo apaixonados e têm tudo para serem muito felizes.

É claro que estamos contentes com tudo isso. Com a felicidade dela, que se descreve como caminhando em nuvens, numa taxa de felicidade inimaginável. Com a surpresa da irmã, que já está pensando na viagem para a Pensylvania, no vestido de dama de honra e em um arsenal de outros detalhes. Mas eu não consigo ainda pensar em nada prático, mesmo com um milhão de providências a tomar em 30 dias. Só consigo pensar nisso: minha menina vai se casar...

E algo dói um pouco e não sei porquê.




segunda-feira, novembro 17, 2003

do final do ano

Quase dezembro: e eis aí o final do ano e o Natal. O ano está quase no fim...

É como se os dias, as semanas, os meses tivessem menos horas do que deveriam ter. E na verdade, são as mesmas 24 de horas de sempre, sete dias por semana...

Por que então essa sensação de que o tempo está passando rápido demais?

A noção de tempo é muito relativa, e para comprovar basta analisar a síndrome do segundo tempo no futebol. Se o seu time está perdendo, o tempo segue rápido demais, insuficiente para uma virada ou uma recuperação. Se o time está ganhando, sempre há o risco do adversário virar o jogo, que daí parece não acaba mais.

Com 50 anos, devo estar jogando lá pelos 15 minutos do segundo tempo. Tem muito jogo pela frente ainda, mas já é segundo tempo, com certeza.

Só que na vida não dá para avaliar assim, de forma simples como quem olha o placar, se estamos ganhando ou perdendo. Porque a qualquer momento podem ocorrer reviravoltas que modificam completamente essa equação.

E, embora a analogia com uma partida de futebol tenha relativa adequação, a vida engendra teias complexas de sentimentos, valores, emoções, fraquezas, ligações que tornam quase impossível uma avaliação no meio do caminho.

Podemos no máximo nos perguntar se estamos gostando do jogo ou se está na hora de fazer mudanças mais significativas.

E não há época mais propícia para nos fazermos essas perguntas do que no final do ano. A proximidade do novo calendário acelera esse questionamento. É como se a perspectiva de um novo ano incluísse possibilidades de mudanças menos disponíveis em outras épocas.

Mas talvez o grande mérito do final do ano seja mesmo o de nos levar a olhar para trás e a desejar novas perspectivas para o que vem pela frente.

E daí alinhamos um monte de boas intenções para o ano que vem. A maior parte fica esquecida logo a partir de janeiro. Poucas vão se tornar ações. Mas, felizmente, sempre nos damos mais uma chance e alinhamos novos e bons propósitos, ainda que só no final do ano...




domingo, novembro 09, 2003

Objeto de desejo

Os cheiros sempre foram um componente importante na minha percepção do mundo. Cheiros de toda sorte e natureza, desde os adoráveis aos que te afastam de imediato.

Entre os mais alvissareiros está o delicioso cheiro de terra molhada no inicio da estação das chuvas, quando os primeiros pingos caem sobre os telhados empoeirados e a terra carente exala um odor de renovação, de vida...

Mas essa semana foi uma imagem que me trouxe á memória um cheiro inesquecível. A foto do vidro de perfume "Toque de Amor" da Avon. O vidro é ainda o mesmo de trinta e seis anos atrás, quando o vi pela primeira vez no quarto da irmã mais velha de uma amiga.

Numa quente tarde de sábado, entrei por poucos minutos no quarto da moça. Ela tinha uma penteadeira, com vários objetos de toucador, incluindo uma bombinha para borrifar perfume, lindissima, com uma cordinha púrpura na ponta.

E entre seus tesouros havia um vidro de perfume "Toque de Amor" da Avon.

Nos meus catorze anos ainda não tinha visto um perfume de verdade. Minha mãe, em suas reduzidas posses, usava Água de Colônia e já era um luxo para a época.

A partir dessa tarde o vidrinho passou a povoar minha imaginação e a se transformar em objeto de forte desejo.

Meses depois, eu me preparava para a esperadíssima festa de formatura do ginásio. Iria usar um vestido novo, amarelinho, com pequenas tranças de tecido realçando o decote, uma obra de arte costurada por minha mãe. Mas certamente minha noite de princesa seria incompleta sem uma nuance do tal "Toque de Amor", garantia absoluta de uma noite memorável.

Fui falar com a proprietária do perfume, e expus a importância de uma leve borrifada do líquido precioso. O argumento dela foi contundente: se ela cedesse para mim teria que garantir uma soprada também para suas irmãs, que até então não tinham merecido tamanha distinção.

Jurei segredo absoluto sobre a fonte da concessão, sem sucesso. Até que ela, pensando melhor, viu em mim uma possibilidade interessante.

E propôs ceder não apenas um, mas três generosos borrifos, em troca de um serviço muito especial: levar uma carta para uma pessoa.

Fácil demais pensei, e me comprometi com a tarefa.

Á noite ganhei minhas três borrifadas e fui gloriosa para a festa de formatura. No salão de festas de um ginásio de interior, piso vermelho de cimento queimado, a música era garantida por um conjunto da própria cidade que, apesar de estreante, arrasou com as imitações de "Renato e seus Blue Caps" e do Jerry Adriani.

Foi a minha primeira festa dançante e uma noite inesquecível.

Na semana seguinte fui pagar minha dívida: levar a carta.

O destinatário era o subgerente do único banco da cidade, bonitão, casado, três filhos.

Dois meses depois, o caso dos dois se tornou público. A esposa traída fez todo alarde possível. Como convinha aos costumes da época, minha patrocinadora, aos 19 anos, foi expulsa de casa. Sem ter parentes que a acolhessem, foi embora da cidade. O moço também foi transferido sabe Deus para onde.

Nunca mais tive noticias dela ou dele...

Também nunca mais usei o tal perfume.


segunda-feira, novembro 03, 2003

Manon des Sources

Aos poucos a pequena gatinha Manon está entrando na nossa vida, com sua alegria infantil. Nos seus quase dois meses de vida tem a alegria e a despreocupação de todos os filhotinhos. Dentro de dez meses será adulta e se tornará circunspecta e observadora, quieta e orgulhosa como a maioria dos animais de sua raça.

Perguntaram-me recentemente a origem do nome Manon. É um nome forte, cheio de significados.

A primeira vez que ouvi esse nome foi no livro "Manon Lescaut" escrito pelo Abade Prévost. Muito depois, o livro inspirou a terceira ópera de Giacomo Puccini, que conservou o mesmo nome do romance e que, pelo seu teor romanesco, fez grande sucesso.

Mas nos romances de Marcel Pagnol que o nome me marcou. Pagnol compôs seu romance em duas partes: Jean de Florette e Manon des Sources, ambos transformados em filmes.

Também no cinema Jean de Florette é a primeira parte de uma história que se passa na zona rural francesa nos anos 20. A parte dois é Manon des Sources, quando a garotinha já é uma moça, vivida pela belíssima Emmanuelle Béart. Em Jean de Florette, Gerárd Depardieu e Yves Montand arrasam com suas interpretações inesquecíveis.

O filme é uma lição sobre a ganância, a natureza humana e como coisas ruins acontecem com pessoas boas. Jean de Florette é um homem urbano, cheio de idéias como cultivar seu terreno e criar coelhos. Sua paixão pela vida transparece na brilhante atuação de Depardieu, que nos emociona ao vê-lo sofrer para conseguir realizar seus sonhos. E Manon é a filhinha que acompanha o sofrimento do pai e que mais tarde vai se vingar duramente.

Compramos os dois volumes dos livros no BHV em 94. Tradicionalmente sempre contei estórias para minhas filhas, todas as noites, a maioria delas criadas na hora H e em geral com vários capítulos que estendiam os percalços dos personagens por semanas. Com o tempo e a idade das meninas, as estórias começaram a se basear em romances. Foi assim que a estória de Manon chegou a nossa casa, em capítulos diários, lidos na véspera e recontados no dia seguinte.

Estávamos em férias escolares e a ansiedade das meninas pela estória foi memorável, talvez mais intensa do que com as outras. As desventuras de Jean de Florette e mais á frente de Manon, povoaram nossa imaginação por muito tempo.

Em 97 fomos ao Luberon, onde Pagnol ambientou seu romance cheio de referências ao clima e à vegetação da região. Eu queria imensamente ver os campos da região de Provence, as plantações de lavanda e as encostas cheias de pedregulhos e oliveiras.

A região do Luberon é um pedacinho no coração da Provence que tem uma característica muito própria, mas que de alguma forma dialoga com a região do cerrado no Brasil. Lá como cá são abundantes as ervas e os cheiros. Também é comum a cor palha da vegetação que conhecemos tão bem por aqui no final da temporada da seca. E Pagnol nos envolve nesse sentimento de sequidão da terra e da alma, na pequenez de alguns seres humanos e, principalmente, nas possibilidades de alegria às quais renunciamos sem sequer reconhecer sua existência.



Cartaz do filme Manon des Sources



Imagens da Provence