domingo, agosto 24, 2003

De recomeços

Para Guilherme Lamenha

Concordo: ninguém nos avisou que seria assim. Não fomos nem prevenidos nem preparados. Nas estórias, (assim mesmo, sem agá, porque as com agá não são inventadas) que nos contaram tempos atrás, cresceríamos e teríamos uma profissão, e encontraríamos alguém que nos amasse profundamente e a quem amaríamos profundamente e com quem viveríamos felizes para sempre. Não foi por maldade, foi por perdão. Ou por desconhecimento de causa, sempre me ocorre que eles (esses que nos contaram as estórias sem agá) não podiam supor que os tempos escurecessem como escureceram...

Estamos exaustos de amor não dado nem recebido. Aos poucos vamos percebendo que não há sentido nisso, nem em não dá-lo nem em não recebê-lo. E que mergulhamos num mar tão rígido de impossibilidades, e que nos impusemos tantas proibições que as persianas discretamente abaixadas para o olhar dos outros lentamente se transformaram em grades...

O que estou tentando te dizer companheiro, é que reinaugurei a minha vida ontem...

Eu sei, eu sei... também me disse que assim como ontem voltei a abrir janelas, amanhã talvez volte a fechá-las.

Não estou nem punk, nem odara, companheiro. Estou vivo. E descobri isso ontem porque algumas das pessoas que eu mais amava me foram roubadas pela morte, ou pelas viagens ou por outras formas impublicáveis. E se morri um pouco em cada uma dessas perdas, sai muito mais vivo.



Trecho da crônica "Qualquer coisa como uma carta" de Caio Fernando Abreu - publicada na Folha da Manhã dez/77

sábado, agosto 16, 2003

Da solidão

Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes
Estou sozinho no quarto
Estou sozinho na América.
...
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
E a essa hora tardia
Como procurar amigo?
A BRUXA de Carlos Drummond de Andrade

Se eu amo o meu semelhante?
Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?
EXAME DE CONSCIÊNCIA de Mário Quintana


Este poemas te dizem algo?

A pergunta de Drummond e Quintana é a mesma: Como procurar amigo? Onde encontrar meu semelhante?

O tema é comum e angustia populações independente de idade, estado civil e classe social. E a solidão do ser humano nesses tempos tão urbanos se apresenta na sua pior forma: a solidão acompanhada, aquela da qual fala Drummond, ou a solidão interior, que se acentua na medida da consciência de que as pessoas á sua volta não são próximas o suficiente.

Esse sentimento é fruto da ausência de comunicação, de interação, de troca e cava túneis na alma. É o fermento que faz crescer o sentimento de abandono, de desistência, de absoluta carência. O lado bom é que pode ser varrido em segundos por um sorriso, uma palavra, um carinho. E o túnel se transforma em ponte.


quarta-feira, agosto 13, 2003

Das impressões

Monet soube como ninguém perseguir a luz e seus efeitos mágicos e fugazes. Assim, os mesmos lugares se transformam sob o efeito do excesso ou mudança da luminosidade. Ironicamente, a catarata fez sua visão ir diminuindo até quase não enxergar mais. Somente três anos antes de sua morte uma cirurgia o ajudou a ver com clareza as nuances de luz e cores que são sua assinatura.



terça-feira, agosto 12, 2003

De Casablanca

São 60 anos desde que o filme teve sua estréia, com estrondoso sucesso.

É mesmo um clássico, na exata definição do que deve ser filme clássico, ainda que sem 100% de consenso.

Outro dia assisti a uma discussão onde se dizia que a aura que se criou em torno do filme era indevida. Talvez seja verdade. Até porque quem argumentava era um jovem com pouco mais de 20 anos, e tendo assistido ao filme recentemente, ele argumentava não ver no filme razão para tanto auê. É um bom filme, dizia, nada mais que isso.

Como argumentar contra uma visão de quem nasceu depois do video cassete? Nós, a população que nasceu antes da invenção desse precursor do DVD, tínhamos que se nos contentar com exibições especiais, em geral em festivais de filmes ou cineclubes, de seleto público universitário, que depois do cinema se reunia para verdadeiras rodadas de discussão sobre o trabalho do diretor e a sua inspiração não explicíta ou algo que o valha...




Á época, os diretores franceses Godard, Malle e Truffaut davam as cartas seguidos de perto por Fellini e Bergman.

Ai de quem não tivesse visto e gostado de Amarcord, La nave va, La dolce vita, L´Argent de Poche, Sonata de Outono, para ficar por aí.

Eu mesma não gostei de Morangos Silvestres, e me atrevi a dizer isso. Escapei da patrulha ideológica e do linchamento cultural graças ao namorado que explicou que era só uma força de expressão, que eu gostara sim...




Mas como poderia eu, recém aprovada no vestibular, e mergulhada nas agruras do Cálculo I da Engenharia Elétrica, compreender os dramas existenciais de um velho médico, que faz um balanço de sua vida e o resultado claramente está no vermelho?

Visto de hoje, "Morangos Silvestres" é uma aula. Mas continua absolutamente hermético para menores de 20 anos.

E Casablanca? Mesmo tendo visto o filme mais de 35 anos do seu lançamento, só de olhar as fotos ainda tenho arrepios. E você?

E a cidade de Casablanca, em uma distante África, da qual me recordo principalmente por ter visitado em pleno Ramadã - em que o sacrifício do jejum imposto enquanto o sol estivesse no horizonte e a ausência de mulheres em locais públicos - foram esquecidos ante à emoção de visitar o bar, com quase a mesma aparência da foto original, que você vê abaixo.




60 anos...

E hoje, a cidade com seu mar azul e casas brancas (daí o nome) festeja os 60 anos de lançamento do filme que fez a fama de Casablanca e ajudou a movimentar um turismo já intenso.

domingo, agosto 10, 2003

De agosto

Agosto acentua o estado de hibernação da natureza. A cor de palha, o ar de fumaça, a sensação de tudo seco. Apesar de ser inverno o sol não é para marinheiro de primeira viagem.

A paisagem está em compasso de espera, e dormindo sob a terra, os bulbos aguardam...

A maior parte da minha vida convivi com essa angustiante espera da chuva que tarda, bem típica da região centro-oeste.

Não há paralelo possível com a sensação das árvores nuas do Sul, onde convivi com inverno de verdade, frio, cinza e chuvoso.

Aqui e ali, em atitude afrontosa com a grama seca, uma ou outra árvore exibe sua flores num suave tom lilás. Muitas preservam as folhas e algumas chegam a esnobar um verde tenro, sabe Deus por que meios.



Mas sobre todas as cores predominam os tons de palha, seco, suave, semi morto.

E há um peso sobre o ar, sobre as pessoas, como se toda a natureza se ressentisse de sede constante.

Nas pequenas cidades do interior, redemoinhos de vento levantam uma poeira vermelha, misturada com cinza, que depois vem se espalhar nos balcões onde os mosquitos disputam algumas gotas que cairam dos copos.

O gato da casa dorme a maior parte do tempo, sem disposição para incomodar seus inimigos. O zumbido de uma mosca mostra que há vida sob essa morte aparente.

Ainda tardará a primeira chuva, que lava o ar, as folhas das arvores, os tetos das casas, a alma das pessoas. E depois, só bem depois, quase dezembro, vêm as chuvas de verão, fortes, potentes, agressivas.

Daqui até lá, os dias se arrastam, como se tivessem piedade de si mesmos...


sábado, agosto 09, 2003

Dos Sonhos

Os sonhos na visão de Kurosawa


As estórias estão muito ligadas aos sonhos.
Os sonhos são nosso lado livre, onde as barreiras se diluem, e podemos flutuar sobre nossas ansiedades, desejos, angústias, em vôos que misturam imagens empoeiradas de arquivos muito profundos em nossa memória.

Os melhores sonhos são os sonhos de olhos abertos, quando o teto de repente se transforma em uma tela de projeção. Nessa mesma tela se projetam os piores pesadelos.

Sonhos e desejos ás vezes se confundem.

Da identificação

"No tempo do rei Moabdar havia em Babilônia um jovem chamado Zadig cuja boa índole se aprimorara pela educação. Embora moço e rico, sabia moderar as paixões, não pretendia ter sempre razão, e costumava respeitar a fraqueza dos homens. Aprendera que o amor-próprio é um balão cheio de vento, de onde brotam tempestades quando se lhes dá uma alfinetada. Não se vangloriava. Era generoso. Era o mais sábio possível, pois procurava viver com os sábios. Instruído na ciência dos antigos caldeus, não ignorava os princípios físicos da natureza e, quanto à metafísica, sabia dessa matéria o que sempre se soube em todas as épocas..." (Voltaire)

Zadig conta estórias como Sherazade, mas suas estórias são diferentes, muito próprias...

Zadig

sexta-feira, agosto 08, 2003

Do início



As estórias de Scherazade carregam uma aura de mágica e de sedução em um ambiente que inclui o fascinante mundo dos gênios, magos, bruxas e fadas do Oriente. Ela passará a contar para o sultão Shariar, durante "As Mil e Uma Noites", uma estória que jamais termina.
Essa estória tem a mistura perfeita da quimica humana: sexo, morte, traição, vingança, magia, humor, calor, esperteza, surpresa e final feliz. Sherazade é uma das mais fortes e inteligentes heroínas da literatura mundial , e triunfa sobre a morte porque é criativa.

" As Mil e Uma Noites" são uma lição sobre contar estórias, sem deixar de ser estórias de amor, de vida, de morte, de dinheiro, de comida e de outras necessidades humanas.

Contar estórias é tão parte da natureza humana quanto a respiração e a circulação.

E tem tudo a ver com reflexões sobre a vida e as pessoas.

Obrigada por compartilhar comigo essa visão.