domingo, agosto 24, 2003

De recomeços

Para Guilherme Lamenha

Concordo: ninguém nos avisou que seria assim. Não fomos nem prevenidos nem preparados. Nas estórias, (assim mesmo, sem agá, porque as com agá não são inventadas) que nos contaram tempos atrás, cresceríamos e teríamos uma profissão, e encontraríamos alguém que nos amasse profundamente e a quem amaríamos profundamente e com quem viveríamos felizes para sempre. Não foi por maldade, foi por perdão. Ou por desconhecimento de causa, sempre me ocorre que eles (esses que nos contaram as estórias sem agá) não podiam supor que os tempos escurecessem como escureceram...

Estamos exaustos de amor não dado nem recebido. Aos poucos vamos percebendo que não há sentido nisso, nem em não dá-lo nem em não recebê-lo. E que mergulhamos num mar tão rígido de impossibilidades, e que nos impusemos tantas proibições que as persianas discretamente abaixadas para o olhar dos outros lentamente se transformaram em grades...

O que estou tentando te dizer companheiro, é que reinaugurei a minha vida ontem...

Eu sei, eu sei... também me disse que assim como ontem voltei a abrir janelas, amanhã talvez volte a fechá-las.

Não estou nem punk, nem odara, companheiro. Estou vivo. E descobri isso ontem porque algumas das pessoas que eu mais amava me foram roubadas pela morte, ou pelas viagens ou por outras formas impublicáveis. E se morri um pouco em cada uma dessas perdas, sai muito mais vivo.



Trecho da crônica "Qualquer coisa como uma carta" de Caio Fernando Abreu - publicada na Folha da Manhã dez/77

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