quarta-feira, outubro 15, 2003

dos Prazeres da Mesa

Chego de São Paulo com uma séria avaria na coluna, prêmio por carregar o lap-top toda a tarde, incluindo três horas de aeroporto em virtude dos tradicionais atrasos dos vôos do final do dia.

Dificil sentar e levantar. Ou fico só sentada, ou só em pé. A massoterapeuta recomendou cama. A dor incomoda, mas não chega a impedir os movimentos. A pilha de compromissos assumidos me manda ir para empresa.

Entre uma escolha e outra, vence a empresa, até porque nessas circunstâncias não há nenhum possibilidade de prazer na cama, mas dá pensar seriamente no prazer da mesa. Encomendo um pré-preparo de um pequeno pedaço de bacalhau a ser feito desfiado com cebolas, batatas, azeitonas, ervas e carinho.

A noite, reservo meia hora para preparar um arroz branco, soltinho, com leve nuance de alho. A família de meu pai, de origem italiana, acreditava que não saber cozinhar era motivo suficiente para deserdar uma filha.

Do lado da minha mãe, a preparação de arroz branco e soltinho sempre foi ponto de honra. A lei da casa é que arroz que se preze pode ser apreciado puro, sem nenhum complemento.

O teste das canditadas a esposas de meus seis irmãos era fazer um arroz a ser apreciado pela dona Carmem, minha mãe, pessoa de grande coração e pronta para o perdão, exceto em questões culinárias.

Cercada à direita e à esquerda, entrei nos anos 70 apta a pilotar um fogão, na completa contramão dos tempos. Nem mesmo a tendência liberalizante da outra colega na engenharia elétrica, éramos duas garotas entre 114 rapazes, conseguiu minimizar o efeito de anos de influência familiar.

Foi com todo o rigor exigido pelo prato que preparei o tal arroz branco, soltinho e fumegante, orgulho de família, enquanto meu companheiro servia poemas de Augusto Meyer e concerto de Tchaikóviski.

Servidos o arroz e o bacalhau, devidamente escoltados por um vinho decente e acessível, fiquei pensando em como os prazeres da mesa são relevantes.

Na escala de importância da maioria dos mortais, estão os prazeres da cama, seguidos de perto pelas delícias da mesa.

E quem melhor que Eça de Queiroz, que faço questão de transcrever, para retratar esse prazer excepcional?

“Em palácio algum, por essa Europa superfina, se come na verdade tão deliciosamente, como nas rústicas quintas de Portugal. Na cozinha enfumarada, com duas panelas de barro e quatro achas a arder no chão, estas caseiras de aldeia, de mangas arregaçadas, guisam um banquete que faria exultar o velho Júpiter, esse transcendente guloso, educado a nectar, o Deus que mais comeu e mais nobremente soube comer, desde que há Deuses no Céu e na Terra.

Quem nunca provou este arroz de caçoula, este anho pascal assado no espeto, estas cabidelas de frango coevas da Monarquia, que enchem a alma, não pode realmente conhecer o que seja a especial bem-aventurança, tão grosseira e tão divina, que no tempo dos frades se chamava a comezaina (...) E a quinta depois... oferece, mais que nenhum outro paraíso humano ou bíblico, o repouso acertado para quem emerge, pesado e risonho, deste arroz e deste anho”


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