quinta-feira, abril 06, 2006

Tanajuras Fritas



Dia nublado, prometendo chuvinha constante e insistente. Dia típico que as crianças detestam pois significa ficar trancadas em casa, na frente da TV, meio sonolentas, sem grandes perspectivas.

O cinza se espalha um pouco sobre a gente, diminuindo a luz externa, predispondo à introspecção nostálgica.

Abro a janela aos poucos, olhando para essa nublada manhã de sábado. Um barulhinho esforçado de asas chama a atenção, e aos poucos um inseto consegue levantar um vôo atrapalhado, mambembe, para se esborrachar no chão da sala. Era uma tanajura.

Olho com mais cuidado para o bichinho que virou símbolo da mulher de cintura fina e quadril largo. Há quanto tempo não revia esse inseto?

Olhando para a formiga alada viajo para minha infância, quando saía em busca de encontrá-las, com um vidrinho na mão, morta de medo que usassem o ferrão.

Meia dúzia de tanajuras no vidrinho valia um capítulo extra das longas estórias contadas por nosso vizinho baiano, apreciador ferrenho de uma fritada de tanajuras, iguaria esperada ansiosamente por ele e disponível somente em um curto período do ano.

Pois nosso vizinho baiano era pedreiro de profissão, morava sozinho num barracão nos fundos da casa da vizinha. Talvez tivesse uns 40 anos e era muito religioso. Chegava em casa às cinco da tarde, tomava banho, pegava seu fumo de corda e se sentava numa cadeira no alpendre da nossa casa, à espera da garotada.

Éramos uma meia dúzia de crianças na faixa de seis anos de idade. Era o final dos anos 50, e a TV ainda era privilégio de poucos. As estórias eram uma atração e tanto, ainda mais os enredos complexos e fantásticos de nosso amigo.

Havia regras bastante rígidas para participar do atento grupo de ouvintes: ter tomado banho, estar com os deveres escolares prontos e ter expressa autorização materna para cada sessão. Naturalmente, isso proporcionava às mães a oportunidade de negociar a concessão como um prêmio por bom comportamento.

As estórias eram contadas em capítulos e duravam semanas com peripécias ainda hoje presentes na minha frágil memória. Sempre havia um personagem de bom coração que enfrentava todas as peripécias possíveis em um mundo imaginário de inimigos cruéis. Mas o bem sempre vencia e o final era sempre feliz.

O grand finale era sempre no sábado, com mais tempo disponível, já que uma vez que escurecesse devíamos ir para a cama.

Mas no tempo das tanajuras a rotina se modificava. O dia continuava claro até sete horas da noite. Na folga da escola a meninada saia atrás das grandes formigas aladas que á noite iriam para a frigideira de nosso contador de estórias. Como recompensa pelo nosso esforço em garantir a rara iguaria, ele se desdobrava em capítulos mais emocionantes, que misturavam perigo, aventura, romance e busca incessante pelos ideais dos heróis, que sempre eram pessoas de carater louvável.

Uma aura de magia, fantasia, aventuras e desventuras, perigos inimagináveis nos transportavam para um mundo onde tudo podia acontecer.

Recheadas de conteúdo educativo e repletas de mensagens que ressaltavam valores fundamentais para o ser humano, as tais estórias aos poucos modelavam nossa visão do mundo.

O registro emocional que tenho ainda hoje desses finais de tarde desperta meus melhores sentimentos.

Sem o dom natural daquele bom homem, me esforcei muito para criar estórias e contá-las para minhas filhas. Muitas vezes dormi antes das meninas, sem concluir o enredo imaginado no carro, ao voltar do trabalho. Também lia os contos de Grim e as deliciosas estórias publicadas quinzenalmente pela revista Alegria.

Há pouco tempo atrás fiquei muito feliz pois minha filha mais velha se lembrava de um dos personagens, a sapinha Cristina.

Fico pensando hoje no potencial que as estórias têm de passar conceitos, e como podem ser importantes para imprimir, de forma profunda, os valores nos quais acreditamos. Nessa fase, as crianças não têm tantos filtros e barreiras que irão adquirir com o tempo.

Mas infelizmente temos terceirizado para a TV uma parte da missão de moldar os valores de nossas crianças.

Olho de novo para a tanajura que está parada no piso da sala, na mesma posição, meio debilitada. Uma nesga de sol se esgueira pela copa da árvore e abre uma área iluminada na grama. Com cuidado pego o bichinho e consigo devolvê-lo ao jardim...


6 comentários:

Anônimo disse...

Gosto muito do seu estilo e dos temas que voce aborda.
As reflexões são sempre uma forma aprimorada de rever a vida.
Vou me permitir ler todos os posts antigos. Têm a qualidade de pequenas crônicas.
Admirável.

Mario Antonio

Ana disse...

Olá, Sherazade! Há muito tempo não venho. Fiquei feliz por encontrar um texto seu, mesmo que mais de um mês já se tenha passado. É sinal de que pensa em voltar!

Também tenho contado muitas histórias para a Luciana. Os personagens não são meus, contudo. Ainda temos tempo para chegar lá.

Espero que este espaço permaneça e, com ele, seus textos saborosos, cheios de sabedoria e doçura.

Um beijo,

Ana

Anônimo disse...

um texto muito curioso... engraçado porque nao sabia que se chamavam assim... estes bixinhos de cintura fina... gostei do texto...mt expressivo e claro...
parabens... virei mais vewzes

Anônimo disse...

Muito delicado o seu texto. Interessante a forma como você trabalha o tempo e volteia as imagens a partir de um olhar: o da tanajura. Gostei. Abraço,

Mafalda

Anônimo disse...

A verdade cansou de se esconder.
A verdade cansou de ser hipócrita.
A verdade resolveu se revelar agora, sem receios ou pudores.
Você está preparado para a verdade?

Anônimo disse...

É sempe triste matar um outro ser vivo, principalmente quando não é vital para nós nos alimentarmos deles...